Farmacêuticos: Um Pilar Esquecido do SNS
Artigo de Opinião de Catarina Duarte, estudante do Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas da Universidade do Algarve

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) português enfrenta hoje pressões estruturais que comprometem a sua capacidade de resposta. A escassez de profissionais, o envelhecimento demográfico e a elevada prevalência de doenças crónicas colocam o sistema num limiar crítico. Em 2024, segundo dados do Instituto Nacional Estatístico (INE), 42,3% da população com 16 ou mais anos referiu ter uma doença crónica ou problema de saúde prolongado, mantendo Portugal entre os países da União Europeia com maior proporção de doentes crónicos, muito acima da média europeia. Estes números traduzem-se numa pressão constante: aumento de utentes sem médico de família, redução da atividade nos cuidados primários, crescimento das listas de espera para consultas e cirurgias, sobrelotação das urgências e dificuldades no acesso a cuidados continuados. O resultado é claro: uma quebra da acessibilidade e da equidade, sobretudo para os doentes crónicos que necessitam de acompanhamento regular.
Neste contexto, os farmacêuticos representam um recurso estratégico ainda subaproveitado. As 2.900 farmácias comunitárias distribuídas por todo o país constituem a rede de cuidados de saúde mais capilar e acessível em Portugal. Para muitas comunidades, o farmacêutico é o profissional de saúde mais próximo e disponível, não apenas em termos geográficos, mas também de relação de confiança. Esta proximidade pode e deve ser utilizada para descongestionar os cuidados primários e as urgências, assegurar a continuidade terapêutica, identificar precocemente incumprimentos ou complicações e promover literacia em saúde.
Um exemplo concreto de integração já em curso é a Renovação da Terapêutica Crónica (RTC), introduzida pela Portaria n.º 263/2023. Este modelo permite que doentes clinicamente estabilizados tenham prescrições com validade até 12 meses e dispensas faseadas. Cabe ao farmacêutico confirmar a estabilidade clínica, avaliar adesão e efeitos adversos, registar notas terapêuticas e evitar ruturas no tratamento. Experiências semelhantes no Reino Unido e no Canadá mostram benefícios claros: redução de consultas apenas para renovação de receitas, mais tempo para médicos se dedicarem a casos complexos, maior adesão e segurança terapêutica e maior satisfação dos doentes.
Contudo, para que o farmacêutico seja realmente protagonista na saúde pública, é necessário dar passos adicionais. É essencial delegar competências clínicas alinhadas com a sua formação, integrar farmácias no planeamento de saúde pública, contratualizar serviços com base em resultados, aumentar a interoperabilidade digital para permitir partilha eficaz e segura de informação e expandir o âmbito de atuação para rastreios, prevenção e gestão ativa de doenças crónicas.
O SNS precisa de soluções estruturais para garantir a sustentabilidade e a acessibilidade, e os farmacêuticos, pela sua proximidade, competência técnica e capilaridade territorial, estão numa posição única para assumir parte da resposta.
Serviços como a RTC demonstram que, quando há delegação e integração, o impacto na continuidade de cuidados e no descongestionamento do SNS é significativo. Mais do que uma medida pontual, é necessário adotar uma estratégia nacional de valorização e integração da profissão farmacêutica. Só assim este recurso, atualmente subaproveitado, poderá tornar-se um verdadeiro pilar da saúde pública portuguesa.