Farmacêuticos na Televisão
The Pharmacist, Dopesick, Olive Kitteridge e Seinfeld, diferentes séries norte-americanas com protagonistas farmacêuticos ou que fazem apenas alusões curiosas sobre a importância dos farmacêuticos na sociedade.
“When you work in a pharmacy, you learn the secrets of everyone in town.”
Olive Kitteridge, Elizabeth Strout
A presença de farmacêuticos em horário nobre não costuma ser um bom augúrio, significa que há uma crise na saúde que os outros profissionais não conseguem explicar por si ou que algum farmacêutico incorreu em alguma falta grave, o que mancha por osmose toda a classe. No domínio das séries televisivas, também não é habitual o foco nos assuntos dos outrora boticários, porém, a multiplicidade de plataformas e de formatos acabou por levar os produtores a interessar-se pelos balcões das farmácias e pelas histórias dos farmacêuticos. Nos últimos anos, as principais plataformas de distribuição decidiram dar algum protagonismo à classe farmacêutica. Em 2020, a Netflix estreou a série documental “The Pharmacist”, sobre o papel de um farmacêutico comunitário de uma localidade na Flórida que tentou chamar a atenção, durante vários anos, para o início da “epidemia dos opiáceos” nos EUA.
A série começa com a morte do seu filho mais velho e a par do choque pela perda está o sentimento de culpa por nunca ter percebido que o filho consumia drogas e frequentava um bairro com um historial de violência. Dadas as dificuldades da polícia em resolver o crime, pela renitência dos habitantes em dar informações, o farmacêutico começa a fazer incursões pelo bairro, a distribuir folhetos e a fazer telefonemas para pessoas que moram na zona onde o filho foi assassinado. Avança por tentativa e erro, como se estivesse à procura de uma substância específica numa amostra complexa. Da observação activa e do registo minucioso passa para o levantamento de hipóteses, até conseguir, num golpe de sorte, encontrar uma evidência segura. Depois de descoberto o culpado, percebemos que a prioridade do farmacêutico não é a vingança a qualquer custo e que as suas preocupações, como profissional e membro da comunidade, estão relacionadas com o círculo vicioso da dependência de estupefacientes, tanto dos ilícitos, como daqueles dispensados na sua farmácia. Ao contrário de alguma opinião pública, com elevada tolerância para o sofrimento alheio, ele considera as vítimas das drogas de abuso dignas de compaixão, bem como as suas famílias e os seus amigos.
A partir desta experiência traumática, o farmacêutico começa a preocupar-se com um novo estupefaciente prescrito para as dores que substituiu os analgésicos tradicionais nas receitas. A Oxicodona, um opiáceo mais potente do que a Morfina, passou a medicamento de primeira linha no combate às dores de dentes ou de costas. As notícias das primeiras mortes por sobredosagem confirmam os receios deste farmacêutico. Depois de verificar os últimos lotes de receitas percebe que o esquema terapêutico é quase sempre o mesmo: um opiáceo de libertação prolongada, uma benzodiazepina e um relaxante muscular (a santíssima trindade da dependência).
Por vezes, o farmacêutico tenta convencer os jovens, que aparecem com estas receitas, a levarem um analgésico não opiáceo para evitar a adicção, mas esta abordagem desagrada ao seu superior e proprietário da farmácia, que faz o seguinte reparo: “As receitas são válidas, se eles não comprarem aqui passam a ir à concorrência onde não ninguém os chateia”. Apesar das tendências que defenderem que as farmácias devem limitar-se a corresponder ao que o médico prescreve, como máquinas de dispensar caixas e frascos, este farmacêutico não consegue ignorar as mortes dos jovens que costumava atender na farmácia e pede uma licença sem vencimento.
Aliviado por já não fazer parte daquele circuito de dispensa de psicotrópicos, toma a decisão de voltar ao terreno. Tal como no primeiro episódio, usa o método de recolha e registo de dados: filma as imediações da clínica associada à maioria das prescrições, tira cópias das receitas, grava conversas com utentes que lhe indicam os elevados valores cobrados pelas prescrições e envia as provas à polícia e à unidade de combate ao tráfico de estupefacientes. Apesar das evidências, depara-se com uma barreira de silêncio da parte das autoridades e de incompreensão por parte dos colegas. Naquela altura, quase ninguém tinha noção do número das vítimas de opiáceos dispensados nas farmácias, mas estima-se que seja de 50.000 por ano. À medida que a série avança sentimo-nos muito próximos deste farmacêutico que arriscou o seu emprego e a sua segurança em nome da defesa da comunidade. A sua persistência deu alguns resultados, uma vez que a clínica em causa fechou, a médica responsável foi detida e o alerta para o perigo dos estupefacientes sob prescrição ficou registado.
Em 2021, a produtora HULU lançou a série “Dopesick”, que conta de forma detalhada as investigações e as dificuldades das autoridades em indiciar o laboratório que introduziu a Oxicodona no mercado, com autorização da FDA, e que induziu em erro os médicos a prescrevê-la em elevadas doses com a garantia de que não causava habituação. Esta série tem como protagonistas um médico e os doentes de uma pequena cidade americana, apanhados na teia do alívio súbito da dor e da consequente dependência, além dos delegados de propaganda médica que divulgam os seus benefícios e dos investigadores que seguiam as pistas da fraude. Nas poucas referências às farmácias, podemos ver as tentativas dos profissionais em recusar a dispensa deste opiáceo e as ameaças dos delegados da empresa farmacêutica em reportar esta recusa à entidade fiscalizadora.
É certo que nestas duas séries a denuncia da empresa farmacêutica que produzia a Oxicodona é o grande objectivo que perpassa por entre o registo de mortos e de grandes sofrimentos, no entanto, salva-se a honra de um farmacêutico de excepção e através dele recebemos, por inerência, um pouco dessa graça.
Para último deixámos a série “Olive Kitteridge”, lançada em 2014 pela HBO, que recebeu vários prémios e tem no elenco actores como Bill Murray, Frances McDormand e Richard Jenkins. Nesta série de quatro episódios, um farmacêutico inventado pela escritora Elizabeth Strout (vencedora de um Pulitzer) trata com a maior gentileza os seus funcionários e os doentes que o procuram. É um farmacêutico prestável e estimado de uma pequena cidade americana para quem a generosidade é um imperativo categórico, mas que no final do dia tem de ter fundo de maneio para pagar ordenados e fornecedores. É refrescante assistir a uma série sem os vícios e os opróbrios que a literatura e o cinema europeu colam aos farmacêuticos que lidam com algo tão impuro e que corrompe como o dinheiro. Talvez porque a actividade comercial e a concorrência são constitutivos da sociedade norte-americana e quem promove vendas de bens ou de serviços para manter a casa a funcionar não seja olhado com desprezo, tal como na velha tradição europeia.
Em Portugal, a RTP também dedicou uma série de ficção à arte galénica, “Capitães do Açúcar”, em que um estudante de farmácia com problemas (ao estilo de Breaking Bad) se alia a um pequeno grupo traficantes de drogas de abuso. Sobre o desenvolvimento desta personagem nortenha, bem como das referências que a série de comédia “Seinfeld” faz dos farmacêuticos falaremos melhor na próxima crónica.