Alia Mira, uma Farmacêutica na vila da Golegã

Alia Mira tem 37 anos e cresceu a acompanhar a mãe até à Farmácia Salgado, na vila da Golegã, onde iniciou funções, como Farmacêutica, depois de terminar o curso na Universidade de Coimbra.

9 de Outubro, 2023

Alia Mira, entre as suas múltiplas actividades criou a DOC (uma revista online) e o projecto #saudeem2minutos, onde explica de forma clara e sucinta assuntos importantes sobre doenças, sintomas e terapias.

 

Em que circunstâncias começou a trabalhar na farmácia actual?

Sendo eu filha de uma farmacêutica, tudo aconteceu muito naturalmente. Tenho uma memória muito vívida de, desde pequena, acompanhar a minha mãe até à farmácia, precisamente na mesma vila (e na mesma farmácia) onde trabalho atualmente. Cresci a ser acarinhada pela população, e passados 15 anos, lá estava eu atrás do balcão, para retribuir com os meus conhecimentos e dedicação.

Por que motivo escolheu a Farmácia Comunitária?

Na altura de escolher um curso, eu sabia que trabalhar na área da saúde era sinónimo de ter a oportunidade (e a sorte) de trabalhar numa das áreas mais importantes das nossas vidas. E eu queria contribuir positivamente para isso. Queria garantir que as pessoas eram cuidadas, e claro que isto aliado ao exemplo que tinha em casa, tornou a farmácia comunitária, um dos meus grandes objetivos.

Como foram as suas experiências anteriores?

Trabalho desde 2008 na mesma farmácia, num cargo estável, que me motiva todos os dias. No entanto, ao longo dos anos, fui tendo outras oportunidades, que desenvolvi paralelamente, nomeadamente trabalhar com a Medinfar em sessões de esclarecimentos à população, e com a Linha SNS24 durante a pandemia. Em 2019 criei a DOC (mag_doc), uma revista online de saúde, com o objetivo de contribuir para a literacia em saúde em Portugal, numa estreita colaboração com outros profissionais, nas mais variadas áreas da saúde. 

Quais foram as situações mais difíceis que presenciou em contexto laboral?

As situações mais difíceis prendem-se essencialmente com o atendimento ao público, e com a pressão que nos é exercida neste tipo de funções. Compreendo que a violência da doença possa tornar as pessoas mais vulneráveis e mais impacientes, mas a má educação não é, de todo, justificável. Na faculdade não nos ensinam a lidar com a ausência de cortesia, nem tão pouco com a exigência de um doente mal informado. É preciso amor à profissão e convicção de que estamos a fazer a coisa certa.

Numa altura em que há muitos licenciados a sair do país, alguma vez pensou em emigrar?

Nunca ponderei emigrar porque felizmente tenho boas condições de trabalho.

Quais são as principais vantagens de trabalhar num meio de baixa densidade populacional?

A principal vantagem é sem dúvida a proximidade com a população. Em contexto de doença, que é sempre um momento de maior fragilidade na vida das pessoas, torna-se fundamental um contacto célere, sem burocracias e empático com o doente. E numa vila, isso é potenciado porque nos conhecemos a todos. Conhecemos as histórias de vida, os parentescos, os episódios de doença, e essencialmente temos tempo para ouvir e prestar a devida atenção. Não digo que isso não acontece numa farmácia de uma grande cidade (os meus colegas dão, com certeza, todo o apoio possível aos seus doentes), mas obviamente torna-se mais difícil.

E as dificuldades?

Por outro, servimos uma população maioritariamente envelhecida e com um baixo nível de qualificação escolar. Não encaro este facto como uma desvantagem, mas antes como um desafio. É fundamental que toda a equipa esteja devidamente adaptada, para que a mensagem seja clara, e chegue ao doente de forma perfeitamente perceptível.

Como é o seu dia-a-dia?

O meu dia normalmente começa pelas 6h30, vejo as primeiras notícias da manhã, saio para correr e volto a casa para me arranjar e seguir depois para o trabalho. Há dias em que a rotina se altera um pouco, mas procuro dar sempre prioridade a três aspetos que considero fundamentais para uma vida saudável: uma alimentação equilibrada, durmo 7 a 8h por noite, e tento fazer exercício físico duas a três vezes por semana.

O número de doentes sem médico de família está a aumentar a nível nacional. Os seus utentes também sentem esta dificuldade no acesso aos cuidados de saúde?

Felizmente esse problema, que é transversal a vários concelhos, ainda não é sentido na nossa USF. Apesar de há uns meses, ter saído um médico para a aposentação, o Município, desempenhando um trabalho exemplar, conseguiu trazer um outro profissional para trabalhar connosco. Portanto, neste momento dispomos de três médicos ao serviço da população.

Está a ser discutida, há algum tempo, a possibilidade de os doentes sem acesso ao Médico de Família poderem renovar receitas de medicação crónica nas farmácias. De que forma esta medida poderá contribuir para a autonomia e responsabilização dos Farmacêuticos por este serviço?

Esta medida só peca por tardia. Desde há muitos anos a esta parte, que isto é praticado em países como o Canadá, e com um impacto muito positivo no acesso aos cuidados de saúde essenciais. As farmácias e os seus farmacêuticos têm de ser parte integrante na passagem do doente pelo sistema de saúde, não só pela renovação da prescrição de medicação crónica, bem como pelo acesso a toda a informação relevante. E isto obviamente, dar-nos-á mais autonomia, e uma maior valorização do nosso trabalho.

E estarão os Farmacêuticos preparados, técnica e cientificamente, para estes desafios?

Claro que sim. Os farmacêuticos são altamente treinados e apresentam as devidas competências, para acompanhar a evolução dos sistemas de saúde. A autonomia que esta medida nos traz, vai contribuir para uma monitorização mais eficaz da segurança e efetividade do tratamento, agilizando todo o processo, e aliviando a constante pressão sobre o SNS. Todos saímos a ganhar.

A Farmácia Comunitária permite uma interacção diária e desafiante com os utentes. Que outros aspectos positivos destaca desta actividade?

Os Farmacêuticos Comunitários têm um enorme impacto na comunidade, na medida em que promovem saúde e bem-estar, e a sociedade deposita neles, toda a confiança. Têm a oportunidade única de educar os doentes, na prevenção, na adesão ao tratamento e na mudança de hábitos de vida. Por outro, são chamados a contribuir para a redução do impacto de graves problemas de saúde pública, como é o caso da vacinação ou da resistência aos antibióticos. São polivalentes e multifacetados, tudo em prol do doente.

A presença de farmacêuticos ao balcão uma das mudanças mais importantes da nossa profissão, mas o excesso de horas em pé tem consequências para a saúde do profissional, o que pode dificultar o próprio atendimento e gerar erros de dispensa ou aconselhamento. Alguns proprietários já anteciparam este problema e permitem a existência de cadeiras ou criaram balcões para que o atendimento possa ser feito sentado. Como é que esta problemática é vista na sua farmácia?

O trabalho numa farmácia comunitária requer realmente muitas horas de pé, o que nos preocupa, e que tentamos minimizar com bancos devidamente distribuídos pelo espaço (nomeadamente no zona de “backoffice”) e por momentos de descanso.

Na sua opinião, os atendimentos sentados seriam um beneficio para os funcionários e para os utentes?

Vejo os atendimentos sentados como algo benéfico para ambas as partes. Um doente com um diagnóstico de uma patologia grave, por exemplo, procura no farmacêutico e na sua equipa, disponibilidade. E é neste sentido, que um atendimento sentado se pode tornar num atendimento mais pessoal e mais privado, ideal para oferecermos ao doente, a devida atenção.

A sua farmácia costuma receber estagiários? Que condições oferecem para atrair farmacêuticos?

Recebemos imensos estagiários ao longo dos anos, e procuramos oferecer aos farmacêuticos que integram a nossa equipa, boas condições de trabalho. A par de uma remuneração justa, sabemos que os horários em farmácia comunitária é algo pouco atrativo, e por isso tentamos que os horários de cada um, sejam compatíveis com uma vida pessoal de qualidade.

A partir da sua perspectiva, que medidas tomava para melhorar a prática na Farmácia Comunitária na região? E no contexto nacional?

A renovação da prescrição crónica pelos farmacêuticos é um grande passo no longo caminho que ainda temos de percorrer para que a sociedade, e o próprio Ministério da Saúde, reconheçam o benefício da intervenção das farmácias nos resultados em saúde. Existem outras medidas como a dispensa dos medicamentos hospitalares, que já é uma realidade, mas que é preciso efetivar e legislar. Apesar de nos últimos anos ter havido uma evolução, a valorização do farmacêutico ainda é um desafio transversal, mas lá chegaremos.

Como vê a evolução da profissão farmacêutica em termos globais?

Considero que, fruto de um longo caminho de luta, somos cada vez mais valorizados. Atualmente as farmácias comunitárias apresentam um leque variado de serviços orientados para os doentes, que vão desde o acompanhamento farmacoterapêutico, a revisão da medicação e a adesão à terapêutica, até à vacinação e ao serviço PIM, que reforçam o nosso papel na sociedade. Somos muitas vezes, o primeiro contacto do doente com o sistema de saúde, potenciando os resultados na melhoria da saúde individual, reduzindo consultas, internamentos e despesas. E isso deve ser reconhecido por todos.

Alia Mira (a segunda da fila de cima a contar da esquerda), com colegas da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra.

Na sua opinião, de que forma os currículos das faculdades de farmácia se deviam adaptar para dotar os futuros farmacêuticos de melhores instrumentos para responder aos desafios da longevidade, das patologias mentais, da desinformação, do acesso aos sistemas de saúde e das novas tecnologias?

Considero que seria interessante o curso contemplar a interação com outros profissionais de saúde, sejam eles médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas. Isto iria promover o trabalho em equipa, face à multidimensão dos problemas de saúde. Depois, oferecer bases de comunicação, para que o futuro farmacêutico consiga lidar com a desinformação e a analfabetização da população. E isto leva-nos à importância da existência de disciplinas sobre tecnologias da saúde, que ensinem a trabalhar com os sistemas de informação e a gerir os dados dos utentes.

Aconselhava o curso de Ciências Farmacêuticas aos candidatos à Universidade? Claro que sim. O curso é bastante completo e dá-nos ótimas bases. Na minha altura, estava demasiado vocacionado para a farmácia comunitária, mas neste momento é bastante abrangente, envolvendo as várias áreas em que um farmacêutico pode atuar.

Como é que se poderia melhorar a formação dos farmacêuticos para que a componente humana esteja ao nível do conhecimento científico?

Para ser um bom profissional nesta área, temos de ser empáticos, temos de ter a capacidade de adaptarmos a nossa linguagem a cada utente, temos de ser sensíveis e solidários com o outro. E isso trabalha-se com uma boa gestão de recursos humanos, com motivação e com valorização de “soft skills”. Por outro lado, devemos apostar na formação, onde se treina essas características. Se queremos que a mensagem chegue ao utente, temos efetivamente de ir ao encontro dele.

Quais são os seus projectos a médio prazo?

Desejo continuar a contribuir para a literacia em saúde. Neste momento sou gestora das redes sociais da minha farmácia, onde procuro fazer isso mesmo com a minha rubrica: #saudeem2minutos. Todas as semanas tento explicar num vídeo de 2 minutos, questões de saúde do dia-a-dia de qualquer utente. Tenho sido muito feliz a “editar saúde”.

Pode consultar aqui um dos vídeos publicados pela Farmacêutica Alia Mira sobre a vacinação contra a Gripe Sazonal.