Ana Paula Martins: “Nunca farei nada que não me sinta capaz de fazer e com condições para fazer.”

Ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, candidata a deputada pela Aliança Democrática, pode assumir a pasta da Saúde em caso de vitória eleitoral. Em entrevista à SALUS Magazine, Ana Paula Martins partilha propostas e expectativas para a Saúde no nosso país.

É um dos nomes mais referenciados como a próxima ministra da Saúde em caso de vitória da Aliança Democrática (AD) nas eleições do próximo dia 10 de março. É um convite que está preparada para aceitar? 


 Assumi um compromisso com o Dr. Luís Montenegro para ser candidata a deputada e ajudar a defender um programa eleitoral que marcasse a diferença na área da saúde. Aceitei o desafio porque me senti motivada, capaz e disponível também pelo facto de ter renunciado à Presidência da Unidade Local de Saúde de Santa Maria. Senti-me com a capacidade de o fazer. Fazer parte de um elenco Governativo é uma missão para qualquer cidadão e nunca é um projeto de vida.

Na política está-se ao serviço do País. Não o contrário. Há uma coisa que eu tenho a certeza: nunca farei nada que não me sinta capaz de fazer e com condições para fazer. O meu compromisso com o líder da AD é fazer o meu melhor como deputada na Assembleia da República. Aliás, se olhar para algumas das coisas que eu fui dizendo ao longo da minha vida política e associativa, quando me perguntavam onde é que eu me via na política, eu disse sempre que era na Assembleia da República.  Por isso é que fiquei tão motivada com este convite, porque eu acredito profundamente que na Assembleia da República se reforça e qualifica a democracia. Quanto maior for a qualidade e a experiência dos deputados, de diferentes idades, energias e de forças parlamentares diferentes, mais se enriquece o debate, melhor é feita a fiscalização de quem governa, e mais se aprofunda a diversidade de ideias e soluções para as comunidades que representamos. 

 Mas no caso da Saúde, especificamente, que é a minha área, seguramente dará muitos e bons frutos. Porque é ao nível da nossa participação na saúde e, nomeadamente, nas comissões especializadas, que fazemos uma fiscalização daquilo que é a atividade governativa que discutimos iniciativas não só parlamentares, mas legislativas, que são muito importantes para a forma como são implementadas as medidas.  
Para já está a ser uma experiência muito enriquecedora, tenho aprendido muito nesta campanha sobre as pessoas e sobre a forma como vivem, ou sobrevivem, no Distrito de Lisboa. Posso afirmar que é um momento que considero determinante na minha vida porque queremos vencer estas eleições com base na promessa de mudança. Portugal precisa de uma nova ambição. 

Qual deve ser, na sua opinião, o perfil do próximo ministro ou ministra da Saúde? 


O próximo titular da pasta da saúde deverá ser alguém que olha para a evidência como uma fonte substantiva de apoio à decisão. Através das Universidades, Centros de Conhecimento temos hoje muita capacidade de gerar e analisar evidência que apoie uma tomada de decisão, ponderada sempre por dimensões políticas, mas com fundamentos cuja transparência, por uma ou outra opção no âmbito das políticas públicas, nos dê a áxima confiança de que as decisões políticas podem efetivamente transformar a vida das pessoas. Deve ser alguém que não se feche no gabinete, alguém que goste de pessoas, alguém que vá, que apareça sem ser convidado e que surpreenda, que apoie quem está no terreno porque os cidadãos e os profissionais vivem situações muito difíceis, com falhas de humanização significativas que é preciso conhecer para intervir. E é preciso que seja alguém com coragem.

E não apenas aquela coragem visível, porque muitas vezes a coragem também se revela nos silêncios, mas uma coragem temperada pela prudência de quem já errou e aprendeu com a experiência.  É preciso alguém que goste de trabalhar em equipa e que perceba a importância desse trabalho. Que se rodeie de gente competente, mas com pensamento próprio, para cumprir um programa com medidas exigentes que têm um calendário. O tempo de execução é da maior importância também nas políticas públicas. Eu diria que precisamos de um ministro com um perfil de sabedoria, energia, e resistência e que não tem nada que ver com a idade, nem com as competências de natureza académica.

Tem sobretudo, que ver com as competências de natureza política, de liderança, ao qual se deve acrescentar a dimensão humana. Com este perfil temos muitas pessoas, felizmente. 

Quais são as prioridades imediatas da AD para a Saúde, caso vença as eleições e forme o próximo governo de Portugal? 


O acesso aos cuidados de saúde, a transformação digital na saúde e os profissionais de saúde. Se não garantimos acesso em tempo útil às pessoas fica em causa o nosso contrato social. Mas não é porque não acho que os outros dois aspetos não sejam fundamentais.

Não temos cuidados de saúde sem profissionais e sem transformação digital não podemos garantir qualidade, eficiência, transparência e sustentabilidade.  E quando falo de transformação digital, não falo só de informatização ou desmaterialização de processos ou do hospital ou do centro de saúde. Falo mesmo naquilo que é uma agenda digital para a saúde, de modernização através de parcerias tecnológicas muito importantes, que vão desde a prevenção ao diagnóstico, passando pela reabilitação, ou seja, toda a cadeia de valor e que criam, juntamente com o uso da inteligência artificial, uma nova dinâmica para os utentes e para os profissionais.

Precisamos de mais inteligência no sistema além da humana. 

Como é que se resolve a fuga de profissionais e a dificuldade de acesso à Saúde? 


Permita-me que lhe diga que não senti, durante o tempo que estive em Santa Maria, nem quando estive na Ordem dos Farmacêuticos, que os profissionais de saúde estavam em fuga. Mas é verdade que não estamos a conseguir reter aqueles que já estão há alguns anos no sistema e que, depois de muita resistência – e por que não dizer resiliência – acabam por sentir que já não há nada para eles ali.

O tempo passa e as pessoas começam a ver que têm menos tempo do que já tiveram e que talvez seja inglório, continuar a lutar contra moinhos de vento. Não progridem, não são reconhecidas, as condições de trabalho degradam-se, as organizações do trabalho mantêm-se, muitas vezes, inalterada. E os tempos mudaram. E isto faz com que muitas pessoas saiam, mas não só para o privado ou para o estrangeiro. Algumas abandonam o sector, deixam de ser profissionais de saúde e seguem para outros projetos mais aliciantes, não só do ponto de vista financeiro. 
E a verdade é que não conseguimos competir com os valores oferecidos por outros países. Ainda ontem alguém me diziam que uma empresa belga estava a contratar médicos em Portugal por valores de 17 a 20 mil euros e nós nunca vamos poder competir com isto em salário-base. Não é possível, ponto. Mas temos e devemos ter outras dimensões de atratibilidade. A verdade é que nós continuamos a contar com 150 mil profissionais de saúde no SNS. Portanto, estas pessoas ainda cá estão e temos de olhar para elas e ouvi-las. 

Que soluções propõe para os mais jovens? 


Os recém-licenciados sentem que não há nada para eles aqui porque se qualificaram, fizeram Erasmus, estágios e o que lhes oferecemos são contratos com valores baixos no início de carreira. Mas não é só esta questão que leva os profissionais a abandonar o SNS, é preciso não esquecer a falta de flexibilidade nos horários, de disponibilidade para a investigação, de estágios, de formação, além dos ambientes de trabalho “tóxicos”. Os riscos psicossociais nas organizações devem ser levados muito a sério, conhecidos, para que possamos intervir. E isto é importante e prioritário.

O Professor Pedro Pitta Barros fez uma análise exploratória num artigo que publicou em que perguntou aos jovens de Medicina Geral e Familiar sobre o que valorizavam no seu projeto profissional. A remuneração foi a primeira dimensão, mas acompanhada de muito perto pela flexibilidade da semana de trabalho, pelo bom equilíbrio entre a vida pessoal, familiar e profissional, pela possibilidade de investigação e formação e pelo ambiente de trabalho. Eu estive num hospital onde se escreveu uma parte da história de sucesso da Medicina Portuguesa e do SNS nestes 45 anos, e onde percebi claramente que os serviços que tinham uma organização com líderes motivadores, que eram justos e transparentes nas decisões e que davam espaço também aos mais jovens de contribuir para melhorar o serviço, eram mais procurados.  
A verdade é que ainda convivemos mal com a diferença e com a criação de valor, coisa que as empresas não fazem, pelo contrário, quem vem com mais valor é integrado imediatamente, mas nas nossas universidades e na administração pública habitualmente somos muito endogâmicos, não se valoriza quem vem de outros ecossistemas, quem tem ideias diferentes. 

Como é que podemos ultrapassar esta questão tão tipicamente portuguesa? 


Não há uma bala de prata, mas temos de sair disto. Eu acho que há duas coisas fundamentais, sermos capazes de escolher os melhores líderes, que não são perfeitos, são pessoas que erraram, que se construíram, que aprenderam, mas os líderes do século XXI são aqueles que aprendem a aprender.  Portanto, nós temos de ter pessoas assim com esse perfil, o perfil só diretivo não funciona. O perfil autocrático também não funciona. É muito importante termos líderes que sejam, não apenas empáticos, mas envolventes, que percebam a diferença e que se alegrem com a qualidade das pessoas que trazem para junto de si.  Isto é a primeira coisa que atrai um profissional para vir trabalhar connosco. A segunda coisa é a autonomia das administrações, quer seja nos hospitais, nos centros de saúde. Isto é mais fácil de acontecer com as USF modelo B, porque são pequenos grupos que têm uma carta compromisso, onde todos participam, onde as lideranças são mais horizontais, mas nós não podemos ter todo o sistema assim.

No entanto, as boas práticas podem ser aplicadas aos serviços.  Mas é necessário um grande esforço. Se falar com as empresas globais, percebe que o grande esforço é terem líderes que consigam fazer a gestão e a atracção de talentos e mantê-los o maior tempo possível. Não os podem acorrentar, isso não é possível. Nós costumamos dizer que a coisa mais certa que temos relativamente a alguém com muito talento é que um dia a vamos perder, mas não há problema porque as organizações saudáveis vivem desta atratividade permanente e desta capacidade de irem enriquecendo e se construindo com as passagens de todas estas pessoas. 
 Além disto, os contratos de trabalho, para as atividades em saúde, como carreiras especializadas que são, têm de ser revisitados na sua flexibilidade.

Temos no Programa da AD um Plano de Motivação Profissional. Nós não fugimos das Instituições, nós fugimos das pessoas que nos lideram e às quais não reconhecemos legitimidade e humanidade. Nós não deixamos uma empresa pela empresa em si. Saímos por sentimentos de justiça, por falta de incentivos, de reconhecimento. E normalmente é por falhas nas lideranças. A pequena resposta à pergunta é esta: temos de passar de um sistema inteligência hierárquica para uma inteligência distribuída. E esta inteligência distribuída é a capacidade de termos líderes que vivem bem com esta inteligência distribuída, sem se sentirem ameaçados por estar rodeados por alguém que é muito melhor que eles na maior parte das coisas.

Saiu do Hospital de Santa Maria em protesto com a criação das ULS e teve toda a solidariedade dos profissionais de saúde. Quais são, na sua visão, os grandes problemas das ULS?

Eu gostava de lhe falar das ULS num hospital universitário. Acho que há três razões que nos levam a antecipar que um hospital universitário não pode ser uma Unidade Local de Saúde, primeiro porque ele não é local, 60% das pessoas que estão a ser tratadas neste hospital universitário vêm de fora das freguesias geográficas que estão adstritas ao Hospital. Ou seja, chamamos Local ao que não é local, é Nacional e até internacional. Em segundo lugar, porque é um ecossistema muito complexo onde se produzem cuidados altamente diferenciados, de fim de linha, com centros de referência nacionais e internacionais, que, aliás, vivem com muito poucas condições e que estão também precisar de ser revisitados, se queremos continuar a preservar a medicina de qualidade que temos. E em terceiro lugar, porque as ULS têm um modelo de financiamento por capitação que deixa antever uma situação económico-financeira muito desfavorável. O Hospital de Santa Maria tem, há muitos anos, uma situação financeira desfavorável, e começamos a não ter fundos para modernizar e transformar. 

No limite, mesmo que se venha a comprovar que as unidades locais de saúde de segunda geração são uma perspetiva interessante para a integração de cuidados eu diria que nenhum hospital universitário devia passar a ULS. 


A quarta razão tem a ver objetivamente com o facto de num Hospital Universitário o ensino e a investigação terem modelos de gestão muito exigentes. Sem prejuízo para a integração de cuidados, os Hospitais Universitários devem ter carteiras de serviços, que sendo complementares entre si, devem ser acedidos por referenciação fazendo desse forma, e apenas dessa forma, parte de processos assistenciais integrados. Este modelo vai gerar procura intensa, ainda mais, de cuidados que podem ser feitos noutros hospitais, com excelentes resultados, e ocupar a capacidade de resposta/oferta muito diferenciada com custos de oportunidade relevantes. 
No limite, mesmo que se venha a comprovar que as unidades locais de saúde de segunda geração são uma perspectiva interessante para a integração de cuidados eu diria que nenhum hospital universitário devia passar a ULS. Na minha perspectiva e também na perspectiva da AD, uma vez que está no programa.
E deixe-me dizer-lhe mais uma coisa, isto é um risco enorme porque não é a mesma coisa haver necessidade de criar melhorias no acompanhamento dos projetos ULS, por exemplo, no Oeste ou num Hospital universitário como Santa Maria, São João, Coimbra. Porque o sistema é muito complexo e está tudo muito relacionado, inter-relacionado a todo aquilo que seja a desinvestir no foco e na organização destes serviços muito diferenciados, pode ser irremediável, pode levar-nos a décadas de atraso. Além de que o modelo de financiamento não é minimamente compaginável, porque não posso ter um hospital com 17 centros de referência onde se tratam doenças muito complexas e com medicamentos muito complexos, com tecnologia muito cara e não ter linhas de financiamento. E no contrato programa que me foi apresentado, não havia linhas de financiamento, ao contrário dos IPO, que não ficaram dentro das ULS, e mantiveram financiamento para toda a inovação na Oncologia, o que faz todo o sentido.
O Estado tem de acautelar estas situações, caso contrário vamos ter assimetrias nacionais, porque alguns hospitais, para não aumentarem a sua dívida e a sua despesa podem começar a fazer selecção adversa porque já não têm verba disponível e se aparecem mais doentes do que o previsto, não têm como os tratar porque não têm dinheiro nem podem gerar mais dívida.
Esta situação é de uma enorme complexidade, até porque o Santa Maria, como hospital de fim de linha, nunca fecha a porta a ninguém e, portanto, ainda é uma responsabilidade adicional porque os doentes que não são tratados nos outros hospitais acabam ali. O problema aqui está para além das responsabilidades, é uma questão de lucidez. Tem de haver lucidez e por isso é que eu disse na altura que não me sentia capaz de fazer este processo porque não acredito nele e não há nada pior do que começar um projeto no qual não se acredita. Por isso achei que o Ministro Manuel Pizarro e o Fernando Araújo deveriam encontrar outra pessoa que acreditasse no projeto e ainda bem que encontraram, porque não servimos todos para tudo.

No limite, mesmo que se venha a comprovar que as unidades locais de saúde de segunda geração são uma perspetiva interessante para a integração de cuidados eu diria que nenhum hospital universitário devia passar a ULS.  Finalmente, o modelo de financiamento não é minimamente compaginável, porque não posso ter um hospital com 17 centros de referência onde se tratam doenças muito complexas e raras e com medicamentos muito caros com tecnologia muito cara e não ter linhas de financiamento dedicadas.  

Quando falamos em parcerias Público privadas, nós não estamos só a falar de construção, como está a acontecer no Hospital de Todos os Santos, nem de gestão clínica. Estamos a falar de parcerias nas áreas tecnológicas, na requalificação dos hospitais. No fundo, é tirar da esfera pública aquilo que pode ser feito com mais eficiência por privados e também pelo sector social.

O que deveria mudar no imediato na gestão dos hospitais? As PPP serão a única solução?


É uma decisão que terá de ser vista e avaliada de acordo com os indicadores. Quando falamos em parcerias Público privadas, nós não estamos só a falar de construção, como está a acontecer no Hospital de Todos os Santos, nem de gestão clínica. Estamos a falar de parcerias nas áreas tecnológicas, na requalificação dos hospitais. No fundo, é tirar da esfera pública aquilo que pode ser feito com mais eficiência por privados e também pelo sector social. Qualquer que seja a força política que venha a governar a partir de 10 de Março, eu diria que os modelos de gestão podem coabitar. Terá de ser sempre o que melhor se adequa à missão e que gera melhores eficiências e motivação dos profissionais. 

Este governo do PS também falou na autonomia de gestão e estava a preparar projetos-piloto para alguns hospitais. Eu começaria pelos hospitais que têm melhores resultados e que estão a ser geridos de forma mais eficiente e esses, se calhar, podem começar este projeto de experimentação da autonomia de gestão. E os outros que têm piores resultados serem acompanhados por uma equipa de gestão. Porque é que eu hei de ter os gestores na área pública mal pagos mal remunerados, sem autonomia, sem digital, com as instalações não modernizadas? Qual é o gestor na área pública que, se houver uma parceria para a requalificação do hospital, não vai beneficiar na sua gestão? Mas para ter autonomia de gestão, preciso de garantir que tenho os melhores a gerir, com mais competência e experiência e que existe partilha efetiva de responsabilidades. 

As USF modelo B são para manter?


Todos os modelos de organização que têm bons resultados assistenciais, económico-financeiros e de motivação das equipas e satisfação dos utilizadores devem ser mantidos e aprofundados. 

E as USF modelo C?


A AD olha com abertura para as para as USF modelo C, mas elas nunca foram implementadas. Tinham caráter transitório, mas acho que é uma possibilidade de ir buscar pessoas que já estão fora do sistema, que não querem ter contratos com o estado, individuais de trabalho e que podem organizar-se em cooperativas de médicos ou até através do sector empresarial com uma dotação. É um contrato de programa como os outros.

De que forma podem as farmácias contribuir no atual contexto de falta de acesso à saúde?


De muitas formas, quer pela capilaridade, pela disponibilidade de 24 horas, da qualificação técnica e da equipa multiprofissional, isto é uma evidência. E é preciso não esquecer que temos a melhor rede de farmácias da Europa.
Além da diferenciação que já alcançaram, avançámos muito nas questões da vacinação e penso que isso é já um dado adquirido. Acho que podemos avançar mais naquilo que é a consulta farmacêutica, em alguns programas nas áreas da literacia em saúde e de aspetos ligados à medicina preventiva, nomeadamente àquilo que é a possibilidade de identificar produtores de risco que as farmácias fazem muito bem, porque estão muito próximos das pessoas.

“Podemos ir mais longe com contratos-programa com as farmácias, podíamos ir mais longe na consulta farmacêutica, sobretudo na doença crónica, com uma ligação aos centros de saúde, na referenciação, na optimização da terapêutica.”

Quando nós falamos em planos municipais de saúde e a AD é muito ligada à questão dos planos municipais de saúde, porque temos os exemplos de Cascais, de Lisboa e de outras autarquias, achamos que é possível fazer uma ligação entre as autarquias e as farmácias para projetos nas áreas de medicina preventiva e de minimização da carga da doença. As questões da promoção da saúde e da prevenção da doença são, de facto, o grande motor da sustentabilidade dos próximos 30-40 anos. Ou seja, um sistema de saúde mais orientado para a prevenção, porque a prevenção salva vidas.
E os farmacêuticos são uma geração muito jovem. Já fizeram a transição geracional, estão muito ligadas ao ambiente e a uma vida mais equilibrada, mais inter-relacionada com o ecossistema onde vivemos, com a nossa casa comum e, portanto, também estão muito mais orientados para trabalhar em equipa e também muito mais orientados para fazer intervenções não só de natureza assistencial, mas de natureza preventiva.
Portanto, acho que sim. Em termos de programas de prevenção, acho que podemos fazer mais. Podemos ir mais longe com contratos-programa com as farmácias, podíamos ir mais longe na consulta farmacêutica, sobretudo na doença crónica, com uma ligação aos centros de saúde, na referenciação, na optimização da terapêutica. E acho que podemos também contar com as farmácias para termos mais áreas de inovação terapêutica que eu vejo muito mais, até na linha de alguns medicamentos que estão a entrar no mercado terapêutico e que sendo medicamentos inovadores, nas áreas da diabetes, da doença cardiovascular, na oncologia ou no HIV podem ter muitas vantagens se tiverem programas de acompanhamento farmacoterapêutico nas farmácias, mas para isso são necessários incentivos, fazer as contas ao risco benefício e investir. E sempre que não colocamos os incentivos certos as coisas regridem.

Qual é a sua posição relativamente à renovação terapêutica em doentes crónicos nas farmácias?


Isto tem de se aprofundar, até pela falta de medicamentos, temos de ter farmacêuticos a poder fazer substituições terapêuticas ao abrigo de protocolos baseados na evidência e discutidos com os médicos que têm a responsabilidade da prescrição,
Quando é necessário haver decisões terapêuticas já existem forma de os resolver entre os vários profissionais, em proximidade ou em meio hospitalar. E na farmácia já existe a possibilidade de comunicação eletrónica através das notas terapêuticas e não há nenhuma razão para que este diálogo não seja aprofundado de forma objetiva.

Que avaliação faz do trabalho da Ordem dos Farmacêuticos, em especial do atual bastonário?


Não estou no perímetro de proximidade da Ordem dos Farmacêuticos. Quando saio de uma função e missão, afasto-me completamente, porque é um novo momento e já não me é destinado. Vivo muito bem com o passado. A Ordem dos Farmacêuticos é passado para mim, que recordo com muito carinho, mas que não acompanho. Mas estou certa de que o trabalho que está a ser feito merece o reconhecimento dos farmacêuticos.

Que projetos gostava de ter concluído enquanto bastonária?


Tive muita pena de não termos conseguido reabilitar a sede histórica da Ordem na rua da Sociedade Farmacêutica. Mas fazer obras neste País é um calvário.

E sobre o novo estatuto das Ordens Profissionais, tem algum comentário?


Não comento, apenas refiro que a AD trabalha muito bem com as Ordens Profissionais.

Ainda se recorda dos motivos que a levaram a escolher o curso de Ciências Farmacêuticas?

Não consegui para medicina. Na altura não tinha nota, depois tive nota para mudar e não quis. O meu pai era farmacêutico, os meus avós também e acabei por gostar do curso. Adorei o ambiente farmacêutico e fui feliz. O meu pai e os meus avós tinham farmácias, aqui e em Angola. Depois do 25 de Abril regressámos, e o meu pai, entretanto morreu e nunca cheguei a ser proprietária de uma farmácia, mas trabalhei em farmácia comunitária algumas vezes e gostei.

Na altura havia as três áreas: Farmácia Comunitária, Indústria e Análises. Seguiu Análises Clínicas?


Segui Análises Clínicas porque era a área que me oferecia mais propostas de natureza clínica. E foi aí que iniciei o meu trabalho com a Professora Odete Ferreira e aprofundarmos o trabalho de investigação na área do VIH. Comecei a fazer investigação como estudante, no Grupo do Professor Carlos Silveira, em farmacologia e depois passei para a virologia com a Professora Helena Lourenço. Outra linha de investigação era a doença de Lyme e depois acabei por ir para a Ordem com o Professor Carlos Silveira e a partir daqui é uma história longuíssima que agora não temos tempo de contar.

Como é que surgiu a possibilidade de começar a dar aulas na Faculdade?


Fui convidada pelo Professor José Cabrita quando acabei o mestrado na faculdade de Ciências Médicas em epidemiologia e comecei a fazer projeto de doutoramento. Também fui convidada pela Associação Nacional de Farmácias para criar o Centro de Estudos de Farmacoepidemiologia e nessa altura o Professor José Cabrita, que também estava muito orientado para a epidemiologia, convidou-me para ser assistente.

Criou o departamento de fármaco epidemiologia na ANF. Como é que foi?


Foram 13 anos incríveis de construção a partir do zero. Foram-me dadas todas as condições. Grande parte daquilo que eu sou devo-o às farmácias portuguesas. A outra parte devo-o à indústria farmacêutica porque me deram a oportunidade de conhecer outros modelos de trabalho, modelos multi globais e nacionais. Eu sou um produto de muitas coisas, de muitas experiências e também de várias áreas. Agora também de um grande hospital universitário. Mas saí sempre dos projectos de uma forma positiva, sempre comandei o meu destino.

Atualmente, quais são os atrativos da profissão farmacêutica para os jovens?


As imensas possibilidades, os farmacêuticos têm uma formação de banda larga. São muito curiosos, são muito dotados, são muito adaptáveis. Vejo muitas capacidades e competências em todos os profissionais, mas os farmacêuticos são multifacetados são uma profissão do século XXI. Olham para muitas áreas e para muitas competências, integram-nas e desenvolvem-nas, arriscam, são empreendedores. Está na nossa genética.

Foi assessora de dois Ministros entre 1992 e 1994. Foi das poucas tentativas a desenvolver atividade política. Por que motivo é que acha que os farmacêuticos não se envolvem politicamente?


Nós temos a nossa história pouco explorada ao nível sociopolítico na profissão, mas eu acho que tivemos gente envolvida, a nível local e até nacional, durante o Estado Novo, e nestes 50 anos de Democracia Nós estamos muito próximos da comunidade, com um trabalho muito intensivo, de 24 horas sobre 24 horas, isso retira-nos muita disponibilidade. Nas farmácias o trabalho nunca acaba e acho que, no final do dia, não nos sobra muito tempo nem energia para outras atividades.

Eu agora vou me dedicar à atividade política, porque esta foi agora a minha opção, mas fiz a opção de primeiro viver a vida profissional e depois disponibilizar me agora para a política. Tive essa oportunidade, nunca me afastei por vocação. Sempre tive este interesse, nasce connosco, não se explica. As pessoas que sentiram o apelo não são mais cidadãs que os outros, mas sentiram sempre uma convocatória de se entregar à vida, pública, no sentido de se dedicar alguma parte do seu tempo, porque o tempo é o recurso mais escasso que temos, para investir em fazer, algo pela comunidade, pelo bem comum. E há muitas formas de o fazer. A política é uma delas.

Mas também admito que é preciso aprofundar veículos culturais na profissão, ou seja, termos mais cultura e arte, mais humanidades nos curricula porque a política mais não é do que este exercício ativo de síntese de saberes e integradores de uma ação cívica para transformar aquilo que é a vida das pessoas em algo melhor e, portanto, essa é a promessa da política, qualquer que seja.

Mas é preciso estofo por causa da exposição pública…


É preciso ter capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo e isso é mesmo importante. É preciso também ter energia e resistência… estar preocupado com as pessoas.