Associação Portuguesa de Farmacêuticos Para a Comunidade: uma conversa com o Presidente da Direcção

Associação Portuguesa de Farmacêuticos Para a Comunidade: uma conversa com o Presidente da Direcção

Criada a partir da experiência do fórum de discussão on-line: CAI – Movimento para a Valorização da Profissão Farmacêutica, a Associação Portuguesa de Farmacêuticos para a Comunidade (APFPC) nasceu no início de 2022 e tenta implementar algumas propostas dos Farmacêuticos Comunitários.

Direcção da Associação Portuguesa de Farmacêuticos para a Comunidade. Da esquerda para a direita: Bruno Guerreiro, Maria Sanches, Hugo Mendes, Ana Ferreira e Pedro Charneca.
Direcção da Associação Portuguesa de Farmacêuticos para a Comunidade.
Da esquerda para a direita: Bruno Guerreiro, Maria Sanches, Hugo Mendes, Ana Ferreira e Pedro Charneca.

A Consulta Farmacêutica tem sido um tema de discussão recorrente entre Farmacêuticos, quais seriam as principais vantagens para a comunidade?

A consulta farmacêutica é algo que já existe, de forma informal e oferecida voluntariamente, em todas as farmácias. As pessoas recorrem aos farmacêuticos com dúvidas sobre a sua saúde, sobre a sua doença e sobre a sua terapêutica todos os dias, e solicitam aconselhamento junto destes, muitas vezes em primeiro lugar, antes de qualquer outro profissional de saúde. Mas uma consulta farmacêutica, como idealizada pelos farmacêuticos, envolve um acompanhamento mais próximo dos utentes, monitorização dos efeitos das terapêuticas, a reconciliação da medicação quando existe alguma alteração na terapêutica instituída. É algo que não se pode fazer ao balcão de uma farmácia pois requer tempo e exige privacidade.

Os benefícios de tal consulta são imensos. Desde logo a optimização das terapêuticas, garantindo a eficácia das mesmas, resultará em ganhos de saúde para os utentes. A deteção precoce de problemas relacionados com a medicação efectivos, mas também de potenciais problemas que ainda possam advir, permite a resolução atempada dos mesmos o que leva a menos problemas de saúde causados por medicamentos, com consequentes poupanças para o sistema de saúde. O reforço da adesão da terapêutica, do uso racional do medicamento e da literacia em saúde também contribuirão para a saúde das comunidades e para a sustentabilidade de todo o sistema de saúde.

Como poderia ser feito o financiamento?

Depende do que estamos a falar. Se for feito de forma integrada com o Serviço Nacional de Saúde, e isso seria o ideal, deverá ser um serviço comparticipado. Mas, na minha opinião, sempre com um copagamento por parte do utente, para o responsabilizar pelos efeitos da terapêutica e reforço da adesão à mesma. No entanto, a consulta farmacêutica pode ser oferecida tal como as consultas médicas, de medicina dentária, e de outras especialidades privadas: pagas integralmente pelos utentes e, eventualmente, com recurso a seguros de saúde.

Quais são as principais resistências à sua implementação?

Desde logo o facto de o serviço já existir e ser “oferecido”. Porque haveria alguém de querer pagar por algo que já lhe é dado?! Tudo bem que estamos a falar de coisas que, em termos de complexidade, são muito diferentes, mas temos de ter em conta a necessidade e a vontade do utente. É primeiro necessário que ele compreenda essa diferença, para depois decidir se é algo de que necessita. Depois esta é uma iniciativa que se quer de prevenção e promoção da saúde. No nosso pais ainda se olha muito para o que é gasto em saúde como despesa e não como investimento, tanto a nível pessoal como a nível político.

Existem perspectivas de mudança a médio prazo no sentido de maior autonomia dos Farmacêuticos para exercerem o acto farmacêutico em qualquer estabelecimento de saúde?

Aos dias de hoje, já se nota a opção de algumas farmácias em seguir uma via mais comercial e outras num sentido de prestação de serviços e cuidados farmacêuticos. Também os farmacêuticos terão de tomar esta decisão pelo local onde querem, e como querem exercer, mais comercial ou com mais serviços. Se olharmos para o que já acontece noutros países podemos antever que a logística do medicamento e os cuidados farmacêuticos vão acabar por se separar. Temos vários exemplos onde já é possível receber medicamentos e dispositivos médicos, comodamente em casa, encomendando-os através da Internet, e o acompanhamento farmacêutico necessário pode ser oferecido pela empresa responsável pelo fornecimento da terapêutica ou por um prestador externo. Mais cedo ou mais tarde isto vai acontecer em Portugal, e provavelmente será mais cedo. Os farmacêuticos têm de se preparar e adaptar para ter aqui um papel importante, e com muito mais autonomia.

Será que a dependência laboral dos Farmacêuticos com um local que obtém lucro pela venda de medicamentos acaba por ser um impedimento para que possa ser confiável numa relação de consulta mais estreita com os doentes?

Todas as atividades económicas têm de gerar lucro para serem sustentáveis. Mesmo sabendo isso as pessoas acorrem às farmácias por aconselhamento dos farmacêuticos, e confiam tanto nesse aconselhamento que o procuram antes de recorrer aos cuidados de saúde primários. Por isso não é por exercerem num local que tem lucro com a venda de medicamentos que os farmacêuticos serão menos confiáveis, nas farmácias ou fora delas.

A problemática passa muito mais pela oferta do conhecimento dos farmacêuticos aquando da aquisição dos medicamentos, e que muitas vezes transcende a informação necessária à correta utilização dos medicamentos: engloba a educação para a saúde, a promoção de estilos de vida saudáveis, recomendações farmacológicas e não-farmacológicas e, muitas vezes, apoio psicológico. Enquanto tudo isto for dado gratuitamente nas farmácias comunitárias, o estabelecimento de consultas farmacêuticas numa farmácia, num consultório farmacêutico ou outra iniciativa individual enfrentará sérios constrangimentos para se estabelecer.

De que forma a falta de cultura liberal no nosso país está a inibir a actividade dos Farmacêuticos?

A nossa visão é efetivamente de que os cuidados farmacêuticos e a logística do medicamento se vão separar. O farmacêutico, como prestador de serviços de saúde, exerce uma profissão livre, com inteira autonomia técnica, científica e deontológica, seja como trabalhador por conta de outrem ou como profissional liberal. Isto é o que está no estatuto da Ordem dos Farmacêuticos e nada nos impede de tomarmos iniciativas mais liberais. A APFPC pretende apoiar todos os colegas que queiram exercer em contexto de maior proximidade às suas comunidades, e isso inclui preparar esse caminho através de formação especifica, mas também da representatividade e defesa dos seus interesses.

Na vossa opinião, quais são as principais barreiras para que os Farmacêuticos, em especial os que trabalham em Farmácia Comunitária, façam parte da resposta primária aos doentes e aliviem a pressão sobre as Urgências e os Centros de Saúde?

Um pouco de desconhecimento daquilo que os farmacêuticos podem e estão habilitados a fazer, um pouco de receio de “usurpação de funções” por outros profissionais de saúde e um pouco de ideologia política contra a integração da iniciativa privada na resposta primária dos cuidados de saúde. Na realidade já somos muito solicitados pelos utentes para resolvermos problemas relacionados com a sua saúde ou terapêuticas, pelo que iríamos ao encontro das expectativas e interesse deles ao fazermos parte dessa resposta primária. Isto pode incluir a renovação da terapêutica de que já falámos, mas também da triagem, intervenção e resolução de situações clínicas ligeiras. Existem já muitos exemplos lá fora onde isto acontece. Não estaríamos a inventar a roda e não só deixaríamos os nossos utentes satisfeitos, encaminhando-os ou fornecendo-lhes uma resposta adequada às suas queixas, o que evitaria também as situações de absentismo escolar ou laboral, e consequentes perdas remuneratórias, como também contribuíamos, mais uma vez, para um sistema de saúde mais eficiente e sustentável.

Temos de promover esta ideia junto das nossas comunidades, influenciar a sua opinião leva à influência na opinião política. Uma maior integração e relacionamento com outros profissionais de saúde, e cuidados de saúde, também contribuirá para que a imagem que estes têm dos farmacêuticos comunitários se adeque mais à realidade, e compreendam que a nossa posição é a de ajudar o sistema de saúde e os nossos doentes.

A modalidade das “Vendas Suspensas” permite a qualquer profissional das farmácias, dispensar medicamentos sujeitos a receita médica sem critério nem regulação. Esta informalidade crónica tem impedido uma clarificação sobre este assunto e afastado os Farmacêuticos da possibilidade real e responsável de prescrever em determinadas situações. Na vossa opinião quais são os principais motivos que para que a situação se mantenha?

O hábito criado nos utentes por esta prática leva a que muitos deles entendam como seu direito exigir-nos as vendas suspensas. É preciso educar as pessoas e isso é um trabalho de todo e qualquer farmacêutico, para que as pessoas solicitem efetivamente as prescrições de todos os medicamentos que necessitam para as suas terapêuticas, independentemente de serem comparticipados ou não, baratos ou caros. Também o facto de se fazer a venda suspensa, ajudando, ou melhor, desenrascando o utente, leva a que se evitem situações graves de falhas nas terapêuticas com consequências na saúde. Talvez isso contribua para que os decisores não entendam como necessário intervir, visto que já existe uma solução, mesmo que informal. Depois, obviamente, a Ordem dos Médicos por entender que seriam usurpadas funções dos médicos, apesar de eles próprios defenderem que não existem recursos humanos suficientes para as necessidades atuais em termos de resposta médica.

Quais são as vossas expectativas sobre a possibilidade de os Farmacêuticos poderem renovar a medicação crónica dos utentes?

A Portaria n.º 263/2023, publicada em Agosto, institui a consulta de histórico de prescrições pelo farmacêutico, dos últimos 12 meses, e canais de comunicação entre farmacêuticos e prescritores. Medidas positivas e que serão efetuadas exclusivamente por farmacêuticos. Para já é isto, mas um maior acesso a dados clínicos, neste caso das prescrições, bem como vias de comunicação efetivas com os médicos prescritores é uma luta antiga dos farmacêuticos, e é a base para permitir novos serviços, neste caso em concreto, para permitir a renovação da terapêutica crónica. Como tal será efetivamente efetuado e implementado, e se tal poderá eliminar definitivamente as vendas suspensas, dando-lhes a legitimidade e permitindo que sejam feitas de forma comparticipada, ainda teremos de esperar para ver.

A presença de farmacêuticos ao balcão é uma das mudanças mais importantes da nossa profissão, mas as várias horas seguidas em pé têm consequências para a saúde. Em algumas farmácias já é possível o atendimento sentado para benefício dos funcionários e dos utentes. Por que motivo isto ainda é uma excepção?

A realidade das farmácias em Portugal é muito diferente do interior para o litoral, e das zonas urbanas para as mais rurais. As infraestruturas das farmácias também. Muitas delas não têm as condições físicas necessárias para esse tipo de atendimento, mas existem muitas outras soluções a meio termo e que são relativamente simples de implementar como, por exemplo, facultar um banco alto ou um encosto aos funcionários, garantir que a posição do monitor permite uma posição de trabalho adequada, que a altura do balcão está ajustada à estatura dos funcionários, entre outros.

É um problema que infelizmente tem vindo a ser ignorado à anos, tal como a saúde mental e as pressões laborais. Felizmente, está na ordem do dia de forma geral e espero que se discuta profundamente no nosso sector. É necessário primeiro quantificar o problema, e por esse motivo a APFPC apoiou e promoveu um estudo que pretendia isso mesmo, quantificar os riscos laborais percepcionados pelos farmacêuticos.

O que será preciso para que os atendimentos mais longos tenham as condições devidas?

Por um lado, serão necessárias alterações àquilo que são as infraestruturas legalmente exigidas às farmácias. Por outro, que as farmácias estejam realmente mais interessadas na prestação de um serviço de saúde do que numa transação comercial. Acredito que muitas farmácias queiram evoluir para essa prestação de serviços de saúde e cuidados farmacêuticos, mas elas precisam que tal seja economicamente viável e hoje em dia a verdade é que o financiamento das farmácias se faz apenas pela margem comercial nas embalagens que vendem…

E como se poderia facilitar a implementação desta prática?

A alteração do modelo de financiamento das farmácias, sendo pagas pelos resultados em saúde dos seus utentes ou pela qualidade e quantidade dos serviços prestados, iria estimular alterações ao nível da forma como são feitos os atendimentos e da atenção dada aos utentes. A outra forma, seria efetivamente haver alterações legais que obrigassem a atendimento sentado ou em gabinete por forma a também garantir a confidencialidade dos atendimentos e a dignidade dos utentes. No modelo de hoje, o utente que está no balcão ao lado ouve muitas vezes atendimentos alheios, escutando informações privadas e que podem ser sensíveis. Cá está… como farmacêutico estou preocupado com o bem-estar dos utentes e desvio-me das condições de trabalho que era o ponto de partida das questões.

Pela primeira vez, a vacinação contra a Covid-19 foi alargada às farmácias, quais são os aspectos mais positivos desta medida e quais os que poderiam melhorar?

Os aspectos positivos são sem dúvida a comodidade que se oferece aos utentes, permitindo-lhes a vacinação no local em que já naturalmente a procuravam. Todos os anos as pessoas procuram nas farmácias as vacinas da gripe e, nestes últimos 3 anos, as pessoas sempre questionaram os farmacêuticos pelas vacinas contra a COVID-19, achando estranho não serem administradas lá. O facto de serem administradas gratuitamente a pessoas com mais de 60 anos e nas farmácias vai ajudar a melhorar a cobertura vacinal, nesta faixa etária, comparativamente aos anos anteriores, sem dúvida nenhuma.

O que pode melhorar é o acesso a dados clínicos relevantes para detectar algumas situações de contra-indicação, que requeiram cuidados especiais ou adiamento da administração. É o nosso problema de sempre, ter de tomar decisões sobre as quais não temos informação fidedigna ou a que temos é parcial, e temos de recorrer aos utentes. Para esta campanha foi dado acesso à consulta do boletim de vacinas eletrónico pelos farmacêuticos, mas não completamente. Em alguns casos, no programa informático surgem apenas as informações relativas às vacinas da gripe e Covid-19, o que não permite saber se houve administração de outra vacina nos 14 dias anteriores. Para além disso, o alargamento do programa a todas as pessoas, independentemente da sua idade, que se querem vacinar contra a Covid-19 e/ou contra a gripe, seria muito positivo.

Segundo dados recentes, 40% dos farmacêuticos, inscritos na Ordem dos Farmacêuticos, tem idade inferior a 35 anos. Como vêm a evolução da profissão farmacêutica nos próximos anos?

Esses dados significam que a profissão é jovem, e que os números em termos de mão de obra se irão manter, desde que não emigrem ou abandonem a profissão. Temos um problema na atractividade do sector e na capacidade de este reter talento. Esse é um problema que as farmácias comunitárias estão já a enfrentar e sobre o qual têm de se debruçar: apesar de a população farmacêutica ser jovem, e o número de recém-licenciados crescer todos os anos, estão a ter dificuldade em contratar e reter os jovens farmacêuticos nas suas equipas. Estes têm demonstrado maior interesse por outras áreas da profissão farmacêutica como a indústria farmacêutica.

Existe um interesse crescente por áreas mais clínicas, de prestação de cuidados farmacêuticos, e mais científicas por parte dos jovens farmacêuticos. Se o sector não se adaptar aos interesses destes, não adianta muito termos uma profissão jovem. Mas o problema também se coloca com os colegas mais velhos, e o mais grave aqui é que estes ao abandonarem as farmácias comunitárias abandonam a profissão farmacêutica, e este será um assunto para também a Ordem dos Farmacêuticos reflectir.

Quais são os planos da APFPC a médio prazo?

Apoiar a iniciativa dos farmacêuticos a exercer na comunidade, oferecer-lhes formação adequada à sua realidade do dia-a-dia e àquilo que pretendem fazer. Ser a voz destes e apoiar a criação de mais serviços farmacêuticos e fomentar a pratica clínica dos farmacêuticos, sempre de encontro ao melhor interesse das pessoas que vivem com doença e da valorização da profissão farmacêutica.