Berta Nunes: Médica de Família, Autarca, Deputada e Secretária de Estado
É Médica de Família em Alfândega da Fé, onde foi Presidente da Câmara durante 10 anos até ser nomeada Secretária de Estado das Comunidades em 2019. Terminou em Janeiro de 2024 o mandato como Deputada pelo Partido Socialista.
Ainda se recorda dos motivos que a levaram a escolher Medicina? Quais eram as expectativas na altura?
Sim queria trabalhar a cuidar das pessoas e na altura tinha muito pouca informação sobre a profissão e não tinha modelos/referências que pudesse seguir. Foi um pouco instintiva a escolha e a minha ideia era ser útil nalguma profissão a cuidar de pessoas.
Durante o curso, quais eram as especialidades de que mais gostava?
Gostava de quase todas menos cirurgias e gostava de psiquiatria que foi a especialidade onde estive mais tempo como interna.
Ainda fez o Serviço à Periferia?
Não, o meu foi o primeiro curso que já escolheu a clinica geral e foi essa a minha escolha. Fui trabalhar para Alfândega da Fé onde tinha pessoas conhecidas e amigas.
Além do seu trabalho como Médica participou ativamente em Associações, manteve uma intensa atividade política como Presidente de Câmara, depois como Deputada e Secretária de Estado. Quando é que surgiu esta paixão pelo serviço público ligado aos movimentos políticos e associativos?
Surgiu na faculdade de medicina com as lutas estudantis no pós 25 de Abril. Nessa altura pertenci a partidos políticos e a movimentos estudantis. Entrei para medicina em 1973/1974 e a partir daí muitos jovens, eu incluída, entrámos na política partidária e nas associações de estudantes.
Viveu de perto o processo revolucionário de 1974/75. Pode contar-nos algumas histórias dessa altura e de como essas vivências influenciaram o seu percurso?
Nós começámos rapidamente a ter atividade política embora já antes do 25 de abril tenhamos visto greves estudantis e polícias a perseguir estudantes na faculdade de medicina, mas eu entrei no ano letivo em que aconteceu o 25 de abril de 1974 e a minha atividade política foi depois do 25 de abril. As histórias são muitas, eu tive uma atividade política intensa, liderei grupos políticos de extrema esquerda e mais adiante participei em grupos feministas e ecologistas e toda esta atividade foi importante para a minha formação política e a minha posição na sociedade sempre com a ideia de transformar para melhor a sociedade em que vivemos.
Apesar de ter nascido num concelho do litoral, acabou por se mudar para Trás-os-Montes no início da sua carreira médica. Quais foram as principais razões que a levaram para Alfândega da Fé?
Eu nasci em Santa Maria de Lamas concelho da Feira e depois vivi em Grijó/Gaia e mais tarde mudámos com a família para Espinho na altura em que entrei na faculdade. Depois, no final do curso vivi vários anos no Porto e finalmente concorri para o Centro de saúde de Alfândega da Fé onde trabalhei 25 anos como médica de família, de seguida fui coordenadora da Sub-região e geri os centros de saúde do distrito e posteriormente candidatei-me e fui eleita Presidente da Câmara de Alfândega da Fé onde estive 10 anos, sendo depois Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas e novamente Deputada.
Quais são as maiores vantagens de viver e de trabalhar neste concelho entre os rios Douro e Sabor?
Qualidade de vida, conhecer as pessoas quase todas e ter um conhecimento grande da comunidade seus problemas e pontos fortes. Ser reconhecida pelo trabalho feito é também um dos pontos positivos.
Uma vez que a maioria da população portuguesa vive encostada à estreita faixa litoral, o interior está a perder cada vez mais população, a que se soma o diminuição dos serviços públicos, em especial da área saúde. Como é que se pode promover a fixação de médicos, de enfermeiros e de outros profissionais de saúde nas vilas e cidades do interior?
Dar incentivos não apenas monetários, mas também a possibilidade de fazerem formação, investigação e sentirem que por estarem numa vila do interior podem do mesmo modo estar na linha da frente do progresso na profissão. Ter internos das várias especialidades e combater a ideia de isolamento e menos valor do trabalho nestes territórios. Acreditar que podemos fazer melhor que em muitas cidades do litoral e dar visibilidade ao trabalho feito, transmitindo uma imagem positiva do trabalho nestas zonas do chamado interior.
Temos um número muito elevado de utentes sem médico de família, na sua opinião, os farmacêuticos e as farmácias comunitárias poderiam suprir, em parte, estas falhas ao nível da oferta nos cuidados de saúde?
Sim podem, sempre em articulação com os cuidados de saúde primários e os centros de saúde.
Em que moldes poderia ser feita partilha de responsabilidades com os farmacêuticos na resposta primária aos doentes para aliviar a pressão sobre as Urgências e os Centros de Saúde?
Os farmacêuticos podem ajudar na gestão da medicação crónica e no ensino aos doentes crónicos. Nas situações agudas devia haver protocolos em que os farmacêuticos pudessem intervir e receitar medicamentos que são de venda livre como paracetamol, etc. Seria muito importante a existência desses procedimentos e medicação recomendada para evitar erros e prejuízo para os doentes. Deviam poder registar num processo a que os médicos de família tivessem acesso essas intervenções terapêuticas e aconselhamentos.
Como deveria ser o financiamento?
Sobre isso não tenho ideias muito definidas, porque ao prestar serviços também fidelizam clientes e vendem medicamentos. Financiamento adicional e direto do OE a discutir. Por exemplo a questão da vacinação nas farmácias devia ser avaliada e ver o que melhorar porque não deve ser retirado do centro de saúde o que fazem bem feito, embora possa haver opção de se vacinar noutros locais em especial farmácias e tudo deve ficar registado no boletim de vacinação da pessoa.
Existem algumas propostas para renovação da medicação crónica nas farmácias e de alguns protocolos ao nível das infecções urinárias associadas aos testes rápidos de detecção nas farmácias. Quais seriam os riscos e os benefícios destas medidas?
Se existirem protocolos claros e consensuais podem haver benefícios e poucas desvantagens.
Em Inglaterra existem alguns farmacêuticos prescritores, parece-lhe que seria possível avançar neste sentido em Portugal?
Os farmacêuticos já prescrevem medicamentos de venda livre em Portugal. Ir mais além seria uma questão a debater.
Parece-lhe que o facto de os farmacêuticos trabalharem em farmácias que assentam num modelo comercial deixa as entidades do sector da saúde desconfiadas em relação à sua independência?
Sim, isso pode acontecer.
Pela primeira vez, a vacinação contra a Covid-19 foi alargada às farmácias e a vacina da gripe passou a ser gratuita para os doentes com mais de 60 anos. Qual é a sua apreciação e quais as lições que poderemos retirar desta experiência?
Esta experiência deve ser avaliada com a participação dos críticos como a USF AN e de quem aderiu a esta proposta da parte das farmácias e com a DGS e ver o que deve ser melhorado e eventualmente mudado.
Na sua opinião, qual seria o melhor modelo de gestão do Serviço Nacional de Saúde para beneficiar os doentes, conter os custos e motivar os profissionais de saúde?
Na minha opinião deve -se investir no público modernizar e melhorar a organização do SNS, reforçar a saúde pública e os cuidados primários, trabalhar com outros parceiros na comunidade como farmácias, escolas, autarquias, ipss etc. Evitar drenar dinheiro para os privados e aumentar a desarticulação do sistema de saúde. Avançar rapidamente para o processo clinico único e ligar incentivos a melhorias adicionais de remuneração como nas USF tipo B que agora vão ser generalizadas desde que cumpram determinados critérios.
Há uma grande percentagem de profissionais de saúde deixar o país, muitos desiludem-se com o trabalho precário, com os salários desadequados aos níveis de responsabilidade, a falta de reconhecimento, mas também a falta de profissionalismo nos locais de trabalho, de organização, a ausência de perspectivas de progressão ou de horários condignos com a vida familiar. De que forma se poderia inverter esta tendência e permitir que os jovens mais qualificados se mantenham em Portugal?
Resolver todos esses problemas que estando já identificados levam muitos profissionais a não querer trabalhar no SNS e aumentar a formação de médicos e outros profissionais que façam falta no sistema de saúde contando sempre com o fato de termos privados que vão estar em competição com o público quando os recursos são escassos como no caso dos médicos.
Será apenas um problema de política orçamental ou será um fenómeno cultural e social mais vasto e difícil de resolver?
Não é só orçamental, mas tem várias componentes incluindo o orçamento. Gestão e liderança mais moderna, que motive os profissionais e os faça dar o seu melhor. São necessárias muitas medidas mas todas devem ser debatidas e ter a participação dos profissionais e doutros parceiros pertinentes. Uma gestão de cima para baixo não motiva e encontra sempre resistências e disso se queixam os profissionais.
Foi uma das poucas médicas a exercer importantes cargos políticos em Portugal. Por que motivo existe tanto desinteresse da parte dos profissionais de saúde em participar na vida associativa e nas decisões que afetam a comunidade?
Os médicos estão muito focados na profissão e de uma forma geral não tem tempo nem incentivos para participar na política, mas muitos participam de várias formas. A questão financeira também conta, os médicos ganham muito mais que os políticos embora tenham perdido poder de compra nos últimos anos, que agora espero seja compensada.
De que forma a ausência destes profissionais empobrece a discussão e limita a possibilidade de encontrar boas soluções para o futuro?
Eles estão sempre na discussão e participam nas soluções pelas suas associações e outros formas. A Ordem dos médicos tem estado sempre ativa embora nem sempre represente todos os médicos e possa ser vista como defendendo posições nem sempre alinhadas com o interesse mais geral do país. É preciso ouvi-los mais e não decidir sem a participação deles.
Quais são os seus planos para os próximos anos?
Ainda não tenho muitos planos e fico feliz por ter imensas possibilidades de continuar a contribuir para o bem comum na política ou fora dela.