Da Farmácia para a Conservação e Restauro

Da Farmácia para a Conservação e Restauro

Catarina Pinheiro, de 45 anos, conta como trocou a Farmácia Hospitalar para seguir a sua paixão antiga pela Conservação e Restauro, concluindo o Doutoramento e fazendo investigação no Laboratório HERCULES, na Universidade de Évora.

Catarina Pinheiro em trabalho de laboratório
A restaurar a estátua de Eusébio da Silva Ferreira
Em actividades lectivas com os mais novos

O curso de Ciências Farmacêuticas foi a sua primeira escolha no acesso à Universidade?

Entrei na 2ª opção, a 1º era Medicina.

Quais eram as expectativas quando soube que ia entrar na Faculdade de Farmácia?

Confesso que quando concorri não sabia muito bem o que fazia um licenciado em Ciências Farmacêuticas, mas era mais ou menos a ordem com que se fazia a escolha. Não foi, por isso, uma escolha 100% consciente. Sabia, claro, que pertencia ao ramo da saúde, uma área que me interessava. Eu gostava de química e de biologia e achei que, sem ter uma grande expectativa em termos de mercado de trabalho, que era uma área que valia a pena conhecer melhor para saber se deveria prosseguir ou não.

Como foram as suas experiências nos diferentes trabalhos como Farmacêutica?

Trabalhei em Comunitária e Hospitalar, ambas foram experiências positivas, permitiram-me apreciar melhor o grande trabalho por trás e a formação necessária para trabalhar nestas áreas. É claro que também me permitiu perceber que não era a isto que me queria dedicar o resto da vida. Assim, apesar de serem experiências positivas foram também esclarecedoras para definir o que queria fazer.

Chegou a trabalhar noutras áreas? Como foi a experiência no estágio de Farmácia Hospitalar?

O estágio foi no Hospital Militar em Lisboa, com um modo de funcionamento muito próprio. Foi uma experiência positiva mas, tal como aconteceu com o estágio em Farmácia Comunitária, não fiquei apaixonada pela actividade profissional. Fiz ainda um estágio extracurricular em Virologia, ligado à investigação e às análises clínicas. Fiquei mais interessada na primeira destas duas valências.

O que é que a desiludiu mais na profissão?

Quando terminei o ensino secundário e concorri à universidade já conhecia a área onde gostava de trabalhar. Na altura havia um curso de três anos de Conservação e Restauro, um bacharelato, que eu conhecia muito vagamente, mas no qual estava muito interessada porque juntava Arte à Ciência. Por isso, não se pode falar de desilusão porque eu já sabia que o que provavelmente gostava de fazer na vida não estava em Ciências Farmacêuticas e nem sequer em Medicina. Em relação ao trabalho que os meus colegas fazem em Farmácia Comunitária diria que há alguma falta de reconhecimento em relação ao trabalho, que é muito exigente, que envolve muitas horas ao balcão e com muito apoio à comunidade. Em termos de Farmácia Hospitalar, apesar de não ter estado na área muito tempo, o que me desiludiu foi o inevitável afastamento na determinação do tratamento dos doentes. Por um lado, é necessário garantir que a medicação está pronta à hora certa, mas como existe uma falta crónica de profissionais nos hospitais nunca sobra tempo e disponibilidade para se conseguir pôr em prática todas as capacidades e conhecimentos e permitir ao farmacêutico focar-se nas decisões terapêuticas. Isto, claro, com prejuizo para todos: doentes, serviços hospitalares e o próprio farmacêutico que se sente desmotivado. Pelo menos esta foi a minha experiência.

Qual foi o principal motivo que a levou a deixar a área farmacêutica?

Como referi, já havia uma área pela qual me tinha apaixonado e apesar de ter dado uma hipótese à área farmacêutica, a Conservação e Restauro falou mais alto. Mas aproveitei a minha formação na área farmacêutica para a minha segunda licenciatura, para o meu Doutoramento e para o meu trabalho diário.

Que alterações na prática farmacêutica lhe dariam vontade de regressar?

Neste momento sou investigadora na área do património. A Conservação e Restauro é a profissão que permite às novas gerações apreciar e aprender com o património em pedra, em pintura, ou em pergaminho, só para citar algumas das matrizes possíveis. É um pouco como a área da saúde, mas aqui o objectivo é manter a “saúde” do nosso património. Gosto muito daquilo que faço. Não é um trabalho estável, porque está ligado à área da Cultura e esta está em permanente oscilação. Mas tenho conseguido desenvolver a minha carreira. Por isso, neste momento, não me imagino a regressar por alterações na prática farmacêutica.

Catarina Pinheiro a cuidar da saúde do património

Do que é que tem mais saudades do seu trabalho em Farmácia Comunitária?

A profissão e a área não são fáceis mas também têm aspectos muito bons e gratificantes, como a capacidade de efectivamente resolver alguns dos problemas das pessoas que entram pela porta. E os horários, embora longos, têm um fim, quando se fecha a porta. Na área em que estou não consigo chegar à hora do fecho e desligar. 

Quais foram as coisas mais complicadas que presenciou no seu trabalho enquanto Farmacêutica? 

Em Farmácia Hospitalar, a falta de tempo para poder ser um elemento decisivo na gestão da terapêutica do doente fazia-me sentir que o trabalho não estava a ser feito de acordo com o que um farmacêutico poderia fazer.

Temos um número muito elevado de utentes sem médico de família e uma gestão cada vez mais difícil nos cuidados de saúde primários, nas urgências e nas cirurgias. Como é que se poderiam melhorar as condições do SNS tanto para os utentes como para os profissionais?

Eu sou uma daquelas pessoas que não tem médico de família e nunca tive. As soluções parecem-me as mais óbvias: melhorar os horários e o vencimento para que os profissionais não saiam para o estrangeiro ou para o privado. Para que se sintam mais reconhecidos e mais eficazes. E para isto seria provavelmente necessário tornar todo o sistema menos burocrático também…. 

11) Os farmacêuticos poderiam fazer parte de algum tipo de solução ao nível dos cuidados de saúde primários? Em que moldes?      

Acho que os farmacêuticos já fazem parte, mas se o seu papel actual é o mais indicado ou se estão a ser exploradas todas as suas possibilidades e capacidades isso é outra coisa… Deixo aos especialistas na área as propostas de melhoria!

A nossa formação em Ciências Farmacêuticas permitiu a muitos colegas emigrar para países da União Europeia com melhores salários e condições laborais. Nunca chegou a ponderar esta hipótese?

Não cheguei a ponderar, porque quando terminei o curso já tinha em vista ingressar em Conservação e Restauro e por isso nem sequer foi uma hipótese.

Quais foram as coisas mais arriscadas que fez?

Talvez ter feito uma segunda licenciatura e ter abandonado uma profissão à qual acabara de chegar por outra que em termos teóricos se adequaria melhor o meu perfil. Trabalhei em part-time enquanto estudava Conservação e Restauro e acabei por não arriscar noutras áreas das Ciências Farmacêuticas para arriscar mais na minha actual carreira.

Como é o dia-a-dia na sua actual profissão?

Sou investigadora e fiz um Doutoramento em Ciências da Conservação, trabalho no Laboratório HERCULES em Évora, dedicado à investigação em património. O meu projecto está relacionado com sustentabilidade ambiental e social e com a exposição ocupacional nas actividades de conservação e restauro. Investigo também em biodeterioração em pergaminho medieval. Vivo em Lisboa, trabalho a partir de casa durante metade da semana, dou aulas, escrevo artigos, faço actividades de comunicação em ciência e tenho bastante autonomia e independência naquilo que faço, que são das coisas que mais prezo na minha actividade.

15) E nas horas livres?

O facto de não ter horários definidos, ao contrário do trabalho em Farmácia Comunitária ou Hospitalar, faz com que não possa fechar a porta e desligar do meu trabalho. Dedico grande parte das minhas horas livres a ponderar novos projectos, a aprender, a ler e a reler. Familiarmente, tenho duas filhas pequenas. Naturalmente também lhes dedico uma parte do meu dia e gosto de fazer artes plásticas com elas. Quando tenho tempo livre gosto de ler (mas ainda não consegui retomar o ritmo que gostaria…) e ouvir podcasts sobre política, especialmente norte-americana. É um hobby estranho, eu sei!

Quais foram os maiores desafios na sua formação posterior ao curso de Ciências Farmacêuticas?

Apesar de os dois cursos parecerem muito diferentes, Ciências Farmacêuticas deu-me excelentes bases para compreender os processos químicos e biológicos que atingem o nosso património.

O maior desafio que encontrei não foi na formação, facilitada pelas bases do curso anterior, a maior dificuldade foram as saídas profissionais, porque apesar de tudo ainda é mais fácil encontrar emprego na área da Farmácia do que em Conservação e Restauro.

Quais as principais diferenças em relação ao curso anterior?

Há algumas bases comuns, Química e Biologia, mas os anos finais são muito diferentes, sendo o curso de Conservação recheado de  disciplinas de história de arte, estética, conhecimentos sobre produção artística… que foram muito importantes porque vão de encontro ao meu gosto pessoal. Este segundo curso deu-me imenso prazer, não apenas pelos conteúdos, mas também por ser uma área que me agradava verdadeiramente e onde eu estava muito feliz a absorver tudo o que era ensinado e toda a informação que me chegava às mãos.

Na sua opinião, de que forma os currículos das faculdades de farmácia se deviam adaptar para responder aos desafios da longevidade, das patologias mentais, da desinformação, do acesso aos sistemas de saúde e das novas tecnologias?

Todas estas áreas são importantíssimas e actuais, mas, para mim, as demências associadas à longevidade são gravíssimas e têm já um grande impacto nas nossas vidas. É um problema que toca à minha família e tenho a certeza que também toca a de muitos dos leitores. Não tenho soluções curriculares específicas para estes problemas mas penso que ajudaria se os currículos não fossem tão estanques.

Aconselhava o curso de Ciências Farmacêuticas aos candidatos ao ensino superior?

Claro que sim, para quem gosta da área da saúde, não apenas na área do medicamento, o curso é muito completo e abrangente. A formação que recebi foi uma grande mais-valia na minha profissão actual uma vez que para os meus vários projectos fui buscar muitos conhecimentos à minha formação de base.

Nesta altura, há centenas de novos alunos a iniciar o segundo semestre do primeiro ano do curso de Ciências Farmacêuticas e outros tantos a preparar-se para os estágios curriculares do último ano. Que mensagem gostaria de deixar aos novos alunos do curso de Ciências Farmacêuticas e àqueles que estão a iniciar os estágios curriculares?

Para os que estão agora a iniciar, muitos parabéns, e mesmo que esta não tenha sido a primeira opção, aproveitem, sejam curiosos e tirem partido das vossas experiências. A universidade não é só estudo, criem as vossas memórias, elas vão ficar para a vida. Eu gostei muito da minha passagem pela Faculdade de Farmácia, das amizades, dos laços que se estabeleceram nessa altura e que ainda perduram. Para os que estão a fazer os estágios curriculares, que aproveitem bem e que experimentem outras possibilidades. Como referi, quando terminei o curso ainda experimentei um estágio em investigação e em análises clínicas, para explorar todas as possibilidades e para ter a certeza se a Conservação e Restauro era mesmo o meu futuro. Por isto, não se fiquem apenas pelos estágios curriculares e se pensarem, mesmo assim, noutros caminhos não vejam o curso de Ciências Farmacêuticas como tempo perdido, porque dá grandes bases e é uma grande ajuda para o futuro, seja ele qual for.

Quais os seus planos para os próximos anos?

Espero continuar na minha área e a trabalhar no ou em colaboração com o Laboratório HERCULES, onde gosto muito de estar porque é um sítio muito dinâmico e onde surgem sempre novos projectos. Este aspecto da novidade é muito importante para mim e para o meu dia-a-dia como investigadora. Idealmente, não posso deixar de mencionar que uma maior estabilidade seria ouro sobre azul uma vez que nesta área, da investigação em Património, estamos sempre à procura de novos financiamentos e é assim que nos vamos mantendo, mas esta imprevisibilidade acaba por ser muito cansativa. No fundo, a ideia é mesmo continuar a fazer o que adoro, mas com maior estabilidade.