Da Farmácia para os Corredores dos Hospitais, de Farmacêutico a Médico: António Hipólito Aguiar


António Hipólito de Aguiar pertence a uma família de notáveis Farmacêuticos, foi Director Técnico da Farmácia Aguiar, foi Presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Farmacêuticos e escreveu diversos livros sobre gestão da farmácia e política do medicamento, até que, aos 45 anos decidiu estudar Ciências Médicas. Nesta conversa informal, assegura-nos que o motivo não foi uma desilusão com a profissão farmacêutica, mas a sua constante vontade de mudança.

Qual foi a sua primeira escolha no concurso de acesso à universidade?  Entrou na opção desejada?

Na altura Farmácia, hoje Ciências Farmacêuticas e sim, entrei na opção que tinha priorizado, na Universidade de Lisboa.

Dadas as suas múltiplas atividades como farmacêutico quer em comunitária, quer na docência, mas também como alguém que pensou e escreveu sobre diversos aspectos da profissão, a sua passagem para as Ciências Médicas foi uma surpresa para muitos colegas. Pode contar quais foram os seus motivos?

Sou por natureza uma pessoa “irrequieta” e na área da saúde gosto particularmente da componente clínica, vertente que como farmacêutico não podia desfrutar na plenitude. Por estes dois conjuntos de razões decidi iniciar um novo ciclo profissional na minha vida, sem naturalmente me desprender totalmente das origens “farmacêuticas” até porque a minha família mantém a propriedade de uma farmácia em Lisboa.

Um dos seus trisavôs foi boticário do Rei D. Carlos. Sente uma responsabilidade especial por esta ligação histórica? Alguma das suas filhas seguiu Ciências Farmacêuticas? 

É apenas uma “curiosidade” histórica, mas que naturalmente reforça a ligação da família às Ciências Farmacêuticas. As minhas filhas sempre escolheram, sem qualquer interferência minha, as suas opções profissionais (e muitas das pessoais também), pois acredito que os Pais não devem escolher os caminhos dos filhos, apenas mostrar-lhes que existem diferentes opções, com diferentes realidades mas a escolha final é delas. Apenas a mais pequena (13 anos) poderá, porventura, trilhar esse caminho já que as mais velhas (gémeas) já terminaram a sua formação académica de base e a do meio iniciou agora numa outra área (comunicação social), pelo que teremos de esperar mais alguns anos para conhecer a escolha da mais jovem.

Quais são as grandes limitações da profissão farmacêutica em termos laborais? E em termos científicos?

Em termos laborais importa realçar a dificuldade de progressão na carreira, e consequentemente, financeira para um farmacêutico assalariado, já que a actividade comunitária (a que seguramente conheço melhor) é muito exigente física e emocionalmente e não parece, em minha opinião, ter definida (na maior parte dos casos) um plano de carreira aliciante, a que naturalmente não é alheia a falta de planos de especialização nas várias áreas existentes.

Em termos científicos a limitação é mais imposta pelo próprio do que pela profissão, ou seja, havendo capacidade de resposta individual de cada um, as ciências farmacêuticas têm um amplo horizonte de progressão (não nos esqueçamos que a seguir aos alimentos os medicamentos são os bens mais consumidos pelo ser humano).

Que alterações na prática farmacêutica teriam sido necessárias para evitar a sua saída?

Nenhumas, saí por vontade de me desafiar e iniciar um novo ciclo de vida profissional e não por desmotivação com a profissão farmacêutica que considero (e dou muitas vezes o exemplo) uma das mais belas profissões do mundo.

Do que é que tem mais saudades do seu trabalho em farmácia? 

Da relação diária com a população, que muito estimava e que me enchia o coração, pelo facto de podermos estar perto e ajudar pessoas em várias dinâmicas de vida (pessoal mas também familiar e profissional).

Como têm sido estes primeiros tempos como Médico?

Extremamente entusiasmantes e plenos de aprendizagem (tenho claramente a noção de que, mesmo com duas décadas de aprendizagem ao nível académico, sabemos muito pouco ainda da nossa condição de saúde, enquanto seres humanos).

Como é o seu dia-a-dia no hospital de Vila Franca de Xira?

É muito diversificado, com trabalho na enfermaria de várias especialidades, idas ao bloco cirúrgico e bancos de urgência, além das actividades formativas frequentes que nos são ministradas.

E nas horas livres?

Poucas são as horas livres porque continuo a dar apoio à farmácia, em matérias de gestão. No restante tempo pratico  desporto, e estou sempre muito envolvido em actividades associativas (neste momento com os Médicos do Mundo e a Ordem dos Médicos). E, naturalmente, a minha mulher e as minhas quatro filhas, apesar de só uma ainda menor, continuam a ser a minha grande prioridade e fonte de energia.

Leva mais trabalho para casa agora como médico?

Nunca levei pouco trabalho para casa, mas também não levo muito mais por ser médico. Sou eu próprio que me encarrego de me ir estimulando continuamente com a escrita de novos livros e o envolvimento em novos projectos (neste momento estou focado no “médico de serviço”, que vos convido desde já a “googlarem”).

A prática está a corresponder às expectativas?

Sim, nisso a profissão médica, quer ao nível do ensino académico (a partir do 3º ano da faculdade temos logo envolvimento clínico com pacientes) quer do quotidiano profissional tem uma enorme componente prática que é, seguramente, uma mais-valia para a nossa progressão profissional.

A sua formação e experiência como farmacêutico têm sido importantes no seu dia-a-dia?

Sem dúvida. Dá-nos uma leitura mais “madura” de muitos temas e no respeitante à farmacologia e farmacoterapêutica temos claramente um domínio bastante mais evidente do que os colegas sem esse “background”.

A actual falta de recursos no SNS afecta o seu dia-a-dia nos cuidados que presta aos doentes?

É um tema muito relevante no quotidiano de um médico porquanto a grande parte da classe trabalha no SNS, com especial preponderância  para os recém-formados que ainda estão numa fase de formação (os internos de formação geral e depois especializada), e nota-se uma carência progressiva de recursos humanos e materiais que afecta, naturalmente, a prestação de cuidados aos pacientes.

Que medidas são necessárias para minorar estas falhas ao nível da resposta aos doentes?

Tem que se equacionar o SNS como um sistema onde o investimento é um factor sem um retorno imediato e isto para um dirigente político é algo difícil de pôr em prática, pela própria natureza das políticas de saúde em países latinos como o nosso, em que os ciclos políticos são muito curtos. Era preciso, efectivamente, um “pacto” político para todo o sector da saúde, para se poderem gerar ganhos, mas que só serão visíveis porventura daqui a uma década ou mais.

Temos um número muito elevado de utentes sem médico de família, na sua opinião, os farmacêuticos poderiam fazer parte da solução ao nível dos cuidados de saúde primários?  Em que moldes? 

Penso que essa é uma matéria de grande actualidade. Os farmacêuticos estão sub-aproveitados, na generalidade, e o país ganharia com a sua inclusão mais evidente na prestação de cuidados e acompanhamento às populações. Na Saúde a tónica ganhadora é a prevenção, e nisso as farmácias e os seus farmacêuticos podem dar muito mais do que atualmente se verifica, assim o Estado queira e se empenhe para tal.

Como deveria ser o financiamento? 

O problema do financiamento é crónico e passa por uma mudança de mentalidades geracional. Em primeiro lugar é preciso gerir melhor os recursos existentes (há muito desperdício evitável) e em segundo lugar as pessoas têm que se mentalizar que têm que participar mais no pagamento da sua “saúde” (infelizmente  o que é gratuito não é valorizado), salvaguardando evidentemente situações de manifesta incapacidade de rendimentos. Não esqueçamos que 18% da população Portuguesa vive abaixo do limiar de pobreza, e por isso sem acesso a grande parte de bens essenciais, enquanto mais de 25% da população tem já seguros de saúde e assistência privada, e essa assimetria é assustadora para conseguir “equilibrar” os pilares de qualquer sistema de saúde que se pretende mais justo, com equidade e eficiente (e não só eficaz).

Parece-lhe que o facto de as farmácias assentarem num modelo comercial deixa as entidades do sector da saúde desconfiadas em relação à sua independência?

Creio que o poder político, embora com melhorias, continua a olhar para as farmácias como empresas e menos como espaços de saúde e como tal, a distinção entre o acto comercial e profissional, e a remuneração deste último, deverá ser alvo de uma reflexão alargada por parte da classe.

E por inerência ao Farmacêutico dada a sua ligação à instituição Farmácia?

Sem dúvida…

Como se poderiam resolver estas dificuldades?

Com a referida diferenciação dos actos (como referi antes) e com a evolução para competências reconhecidas pela Ordem dos Farmacêuticos, no contexto da farmácia comunitária.

Sente que falta uma cultura mais liberal no nosso país?

Falta essencialmente uma cultura progressista, em que os profissionais liberais como os farmacêuticos, que trabalham num contexto privado, sejam parte integrante de um Serviço Nacional de Saúde plural e com o foco nas pessoas, independentemente da sua condição económica, cultural e social.

Está a ser preparada a possibilidade de os doentes sem acesso ao Médico de Família poderem renovar receitas de medicação crónica nas farmácias. De que forma esta medida será importante para os doentes? E para a autonomia e responsabilização dos Farmacêuticos?

Creio que vai ser uma realidade já com um horizonte próximo e uma grande mais-valia para a população, em que, naturalmente, o farmacêutico se pretenda que tenha um protagonismo evidente.

Em Inglaterra existem alguns farmacêuticos prescritores, parece-lhe que seria possível avançar neste sentido em Portugal? 

É um caminho a percorrer, provavelmente com um tempo de execução bastante mais dilatado.

Quais seriam as vantagens para os doentes? E os riscos?  

O acesso ao medicamento é uma “faca” de dois gumes. Os farmacêuticos devem, legitimamente, ambicionar ter mais autonomia mas importa que em primeira instância se percebam as vantagens e inconvenientes de haver um acesso mais generalizado ao medicamento, porquanto que se verifica na actualidade é alguma falta de rigor na dispensa e isso é prejudicial à credibilidade da própria classe e simultaneamente um argumento poderoso para levar os medicamentos sujeitos a receita médica para outras superfícies. 

O medicamento é, não esqueçamos, um produto de risco e os doentes, independentemente de quererem, pouco esclarecidamente, aceder cada vez mais facilmente a este têm, em primeiro lugar, que ver os farmacêuticos como o garante da defesa da sua boa utilização.

Que tipo de formação seria necessária para que os farmacêuticos portugueses ficassem preparados para este desafio?

Os farmacêuticos têm uma boa formação científica e técnica de base; precisam, naturalmente, de criar programas de acreditação para que se garantam competências próprias para os actos que se pretendem executar.

A falta de recursos humanos no SNS tornou-se mais evidente nos últimos anos. Pela sua experiência, que alterações seriam necessárias para evitar a saída dos melhores profissionais? 

Passa, efetivamente, pela valorização das carreiras, em que quer as bases e suportes de trabalho (os médicos despendem, por ex., muito tempo em actos administrativos) quer as remunerações sejam actualizadas, mas fundamentalmente repensadas.

Na sua opinião, qual seria o melhor modelo de gestão para beneficiar os doentes, conter os custos e devolver a confiança aos profissionais de saúde?

Os modelos de gestão, para serem eficazes, têm de ter estrategas e chefias à altura, bem como uma organização hierárquica respeitada e operacionalmente versátil e que mensure, em cada momento, as boas e más práticas de gestão para as tornar, por seu turno, mais eficientes.

Quais são os seus planos a médio prazo?

Exercer medicina, que o investimento pessoal e familiar, foi enorme (é, de facto, difícil voltar à faculdade aos 45 anos), e ajudar as pessoas a viverem com mais saúde.

Nesta altura, temos centenas de novos alunos a iniciar as aulas no primeiro ano do curso de Ciências Farmacêuticas. Que mensagem gostaria de deixar a estes futuros Farmacêuticos?

Gostaria de deixar uma mensagem de felicitações, pedido de empenho e gratidão. Felicitações porque a entrada na faculdade é sempre um momento muito marcante na vida de cada um, e os mais belos momentos da Vossa vida vão ser passados provavelmente na faculdade. Muitos de Vós criarão inclusive uma família, de amigos e verdadeira, pois são muito frequentes os casamentos entre farmacêuticos

Empenho, porque terão 6 anos pela frente em que devem desfrutar, mas dar sempre o Vosso melhor para poderem salvar vidas e honrar a profissão farmacêutica, todos os dias. Gratidão, porque escolherem estudar para serem Farmacêuticos, e só com Vocês a profissão será melhor!