A Farmácia Marques, na Estrada de Benfica, abriu ao público a 16 de Abril de 1898. O seu actual proprietário, Waldemar Simplício, indica-nos algumas fórmulas para manter uma equipa estável e motivada e fala-nos um pouco da reconstrução do edifício após o grande incêndio de 1981.
Qual é a história da fundação desta Farmácia?
Foi criada em 16 de Abril de 1898. Ainda tenho a primeira escritura da Farmácia, porque os fundadores tiveram de tiveram que transformar um estabelecimento de hotelaria em farmácia. Isto era o Hotel Mafra. Se repararem no verso do documento podem ver o valor dos selos que se pagavam por essa escritura. Portanto, 18 reis. Como é que se diz? Emolumentos, não é? E depois também deve estar aí o valor do trespasse para o Sr. António Alberto Marques, morador no Hotel Mafra. Já aqui morava. Achei isto sempre uma curiosidade muito grande. Esta casa esteve na mão da família Marques até 1981, o ano do incêndio.
Onde é que começou o incêndio?
Foi ali por baixo da escada onde eles guardavam, na altura, o algodão e o álcool etílico junto do quadro eléctrico. Deve ter acontecido alguma coisa, uma faísca e começou um incêndio. Ardeu tudo, só ficaram as paredes. Aparte disto, a farmácia tem pouca história. Pelo menos na minha mão. Para trás teria muita história. Havia muita coisa. Os livros, por exemplo, se vocês verificarem, estas farmacopeias são muito antigas. Eu ainda fiquei com algumas. As outras estavam todas carbonizadas. Houve livros que não consegui aproveitar, mas salvei o que pude.
E como é que decidiu avançar para a compra?
Eu já trabalhava nesta farmácia já há muitos anos e a minha mulher tinha acabado a licenciatura de Engenharia em 1979 e nós pensávamos em sair para o estrangeiro. Para Moçambique, para a barragem de Cahora Bassa. Mas entretanto a farmácia ardeu e eu achei por bem que devia fazer alguma coisa. E arrancámos com isto.
Quanto tempo é que demorou a reconstrução?
Uns três meses, a farmácia fechou completamente durante um mês e quando reabrimos éramos apenas funcionários. Depois, há uns 25 anos reformulei isto para o sistema das gavetinhas. Mas a minha história não tem história, é uma história sem história. A minha história, como trabalhador, se calhar teria muita coisa para contar, nós temos utentes que vêm aqui há 50 ou 60 anos. Se olharem para o fontanário em frente podem ver as armas do rei D. Carlos e um pilar, mesmo na esquina, que diz Lisboa: 8 km. Portanto, isto era fora de Lisboa, daí ser um hotel. Há fotografias desta zona em que se vêem argolas na fachada da farmácia, para prender os cavalos. E o fontanário era onde eles davam de beber aos animais. Estamos a falar de uma altura antes do automóvel. Lisboa começava onde é hoje a Fundação Gulbenkian. Ainda está lá a muralha nas traseiras e em frente tem um quartel onde estava o Governo Militar. E aí começava a Lisboa. Até Benfica eram hortas e quintas.
Num bairro onde tantas farmácias, com horários alargados e novas estratégias comercial, qual é o segredo da Farmácia Marques para manter utentes há mais de meio século?
O segredo não é nada de especial. Tive a felicidade, quando abri esta farmácia depois do incêndio, de revigorar a farmácia e de utilizar os armários de metal, em que os fasquinhos e as caixinhas ficavam todas em fila, com separação de produtos, os orais de um lado, os oculares e os nasais de outro. A farmácia teve uma certa graça quando abriu, era uma farmácia limpinha, toda arejada também. E as pessoas que vinham, continuaram a vir. Tive ali um período muito bom. Enquanto os meus colegas das outras farmácias ao pé não despertaram consegui alguma mais-valia. Em relação ao que é que se pode fazer, essa resposta vocês sabem perfeitamente o que é que se pode fazer para continuar a ter pessoas. É o atendimento. O atendimento personalizado. E este personalizado não é o personalizado corrente. É a dedicação à pessoa, independentemente de ela comprar uma caixa de aspirina, um pacote de Borado Sódio, ou o que quer que seja. Foi assim que aprendi. Foi assim que trabalhei muitos anos. As pessoas eram pessoas para mim. Para mim e para os que trabalhavam comigo. Na província ainda encontramos situações em que o farmacêutico é dos poucos profissionais disponíveis para a população. E isto aqui há 50 anos ou há 60 era importante. E foi este o caminho. Não alterei nada. Fiz atendimento ao balcão durante muitos anos quando tomei conta da farmácia. Não era assim muito simpático, ou seja, muito falador, mas acreditava que tinha uma função na vida das pessoas. E isto gera confiança, porque as pessoas sentem isso perfeitamente. Se nós trabalhamos com as pessoas e se alguém vem pedir uma opinião e nós tentamos ajudar, isso é valioso e traduz-se num benefício para quem nos procura. E nunca mais se esquece, quando precisa de alguma coisa regressa, porque tem confiança nos profissionais. E estas coisas sabem-se. Esta é uma farmácia em que se ouvem as pessoas, em que se pergunta como está a família, em que se conhece a família. Temos casos aqui muito curiosos. Já vamos aqui na terceira geração. Vi a mãe de barriga, nasceu a criança e passados 20 ou 25 anos apareceu aqui com o neto. São coisas muito giras. Como é que as pessoas ao fim de tantos anos ainda vêm aqui? O outro segredo é a equipa, os recursos humanos.
Como é que mantém a equipa motivada?
Há aqui um pormenor que é importante nesta situação. Agora vou fazer aqui um autoelogio. Quando trabalhei por conta de outrem, durante anos largos, o dia mais triste para mim era quando ia assinar o recibo. Ficava furioso comigo próprio. Porque tinha uma experiência de trabalho muito profunda, desde a manipulação, manipulava tudo e mais umas gotas, desde o princípio. E quando chegava ao final do mês e assinava o recibinho, aquilo não me agradava nada. Dizia assim para mim, isto não pode ser. E prometi a mim mesmo: quando tiver uma casa minha, a minha equipa será a mais bem paga da cidade de Lisboa. E tenho a certeza absoluta de que durante muitos anos, fui a pessoa que mais pagava aos profissionais que tinha. Criei inclusivamente uma coisa que só nas grandes empresas é que existia, que é o 15º mês. Os meus colaboradores, os actuais e os que já saíram, recebiam 15 meses por ano. Consegui manter isto durante uma série de anos, porque entendo que só pagando aos trabalhadores é que se consegue reunir condições para que a equipa não se desmembre. Ainda hoje, acredito que 90% das farmácias da cidade de Lisboa estão muito abaixo daquilo que eu pago aos meus colaboradores. Mas também não têm equipas com mais de 25 anos. Eu agora já estou mais afastado do atendimento porque tenho uma equipa muito bem estruturada. Eles perceberam muito bem qual era a minha intenção, como é que eu trabalhava. Quer dizer, foi pelo exemplo que eu consegui manter esta estabilidade. Mas é preciso ter um bocadinho de mão nas coisas. Hoje não ligo, mas no início era mais duro. E as pessoas ou estavam comigo ou não estavam comigo. A este exemplo, não permitia duas coisas: conversas sobre futebol nem política. Tive um caso com dois funcionários, um deles era sindicalista e tiveram uma discussão tal que tive de os separar. Não podia permitir uma coisa destas aqui dentro e foram os dois despedidos. Depois esta equipa foi-se formando e já estão juntos há muitos anos.
Já pensou em expandir o espaço da farmácia?
Eu tinha a ideia de criar um espaço ortopédico na farmácia, mas não tinha espaço físico para aquilo que queria fazer, entretanto apareceu aqui uma loja para arrendar e minha mulher foi saber o valor da renda e disse-me que devíamos abrir ali uma ortopedia. Montámos lá a nossa ortopedia, mas aquilo ainda era pequeno e ao fim de dois anos acabámos por comprar uma loja maior ali ao pé da Mata de Benfica. Seria muito agradável se fosse aqui ao lado, não é? Mas já estamos lá há 23 anos e é o meu filho que gere essa parte. Eu já estou muito acabado, sabem? A saúde não tem sido muito benevolente comigo. E mesmo que não queira, há alturas em que a auto-comiseração se instala. E nessas alturas eu não sou capaz de fazer nada. Isto pode durar dois, três, quatro dias. Tenho uma força de vontade muito intensa e acabo por ultrapassar isso, mas as obras são uma coisa muito complicada. Nem imaginam os problemas que tive na altura da conclusão da obra, tinha a mercadoria em caixotes, os procedimentos para a reabertura, pó por todo o lado. Foi uma coisa diabólica. Depois veio a informática e isso deu-me logo um alento muito grande, especialmente à minha mulher, que é engenheira. A área dela é engenharia mesmo. É incrível. Informatizámos a farmácia logo no início. Só para terem uma ideia, antes dos computadores era preciso entregar as receitas dos diversos organismos em departamentos separados: os Bancários, a Caixa General de Depósitos, a Câmara de Lisboa, as Seguradoras… O tratamento disto tudo demorava 24 horas ininterruptas, era preciso escrever o número das receitas, a quantidade de etiquetas… Vocês já não apanharam isto, para não? Aquilo era tudo à mão. Era inacreditável. Quando apareceram estes sistemas informáticos bastava carregar nuns botões e estava feito. Uma maravilha. Foi muito bom para a farmácia. A Informática foi muito boa. Agora já não há farmácias que não estejam informatizadas, mas durante alguns anos houve aí colegas que tinham os computadores dentro de caixas e não avançavam com aquilo. E eu se calhar não teria avançado se não fosse o espírito da mulher. Antes era muito complicado, as etiquetas tinham de ser coladas e houve uma altura em que não autorizavam a fita gomada. Então fazia-se cola, arranjavam-se uns tubos de desodorizantes, enchia-se aquilo de cola líquida, tapava-se com uma gaze dobrada, presa por um elástico, depois barrava-se com aquilo e colavam-se as etiquetas por cima. Era mesmo trabalhoso.
Durante a tropa esteva na farmácia do hospital militar, foi aí que começou a sua ligação com a farmácia?
Não, começou muito antes, foi logo aos 13 anos. Estava na escola e o meu padrinho trabalhava numa farmácia ali no Bairro Azul. O dono era um dos diretores da Lilly, em Portugal. O meu pai em conversa com o meu padrinho disse-me que depois da escola podia ir ter com ele à farmácia. Passei lá dois ou três anos e quando terminei a escola o meu padrinho arranjou-me uma farmácia para trabalhar. Depois, na tropa, podia ter feito uma coisa diferente, mas fui requisitado para o Serviço de Saúde: Farmácia com ele. Estive em Tomar e depois no Hospital Militar da Estrela. Acabou a tropa e regressei à farmácia. Eu gosto muito disto. Foi a minha vida. Fiz de tudo, atendimento ao balcão, compras, gestão, injectáveis, domicílios. E a manipulação, claro.
De onde veio o grande interesse pela manipulação?
Sempre tive muito gosto pela manipulação. Na altura havia muito receituário, desde as hóstias, as pílulas, os óvulos, os papéis, os infusos, os solutos, tudo aquilo que aparecia eu fazia. E tive a sorte de trabalhar em duas farmácias que me marcaram muito. Uma delas era na Rua Braamcamp. A farmácia chamava-se Farmácia Ribeiro e Castro, ainda lá está. Era de um farmacêutico e de um sócio que era professor na faculdade. O farmacêutico foi-me impressionando, foi-me limando e ensinou-me a fazer tudo. Foi um período muito gratificante. E continuei a trazer isso tudo atrás de mim. De maneira que ao chegar aqui, comecei a pôr esta farmácia a manipular e de repente começámos a ter pessoas de todo o lado para fazer os manipulados. Se não fosse aqui, só na Aguiar ou então na Estácio ou na Azevedos. De contrário, daqui para lá ninguém fazia manipulação. Toda a gente tinha um horror àquilo. E eu gostava imenso. Dava-me mesmo gozo, trabalhar o almofariz e a pedra. Tenho uma saudade muito grande disso.
E nos últimos anos, como tem sido o seu trabalho?
Hoje o meu trabalho não me dá assim muito gozo. Talvez por causa da saúde. De vez em quando entro em parafuso e as coisas não correm como eu quero. Depois da cirurgia e dos tratamentos que fiz aos 54 anos, deixei de ter tanta paciência para o balcão. Porque havia pessoas a queixarem-se de uma borbulha ou de um pêlo encravado. Eu percebo que para elas aquilo era um pavor. Mas eu percebi que estava a sentir relutância em ouvir aquelas coisas e fui-me afastando cada vez mais. Também tive a sorte de ter esta equipa porque sabia que não precisava de estar em cima deles. Anteriormente eu fazia tudo, porque quando comprei a farmácia, a compra foi muito pesada. A dona fez-me a cabeça em água, porque havia aqui muitos tubarões em volta. Ela dizia que tinha muita consideração por mim e falou-me num número eu que já achava pesado, mas numa manhã acrescentou mais um zero. E eu fiquei a pensar: Como é que eu vou arranjar dinheiro para pagar uma coisa dessas? Fui três dias para Porto Covo dar pontapés às pedras, olhar para o mar. Como é que vou resolver isto? A minha mulher tinha-se sacrificado para tirar uma segunda licenciatura, quando do que ela gostava era de engenharia, e de repente tínhamos a coisa na mão e o pássaro fugia. E disse cá para mim: não vou deixar escapar isto. E pronto, avancei. Mas foram anos muito duros, foram mais de 15 anos mergulhado em dívida. Os juros eram muito altos e não podia livrar-me da dívida. Eram pagamentos mensais. Tinha que arranjar capital para pagar à antiga dona, aos funcionários e não podia ficar a dever nada nos fornecedores. Mas como já tinha gerido algumas farmácias, pelo menos duas em Lisboa, tinha alguns conhecimentos. Na altura havia uma firma que se chamava João Duarte, era um fornecedor, e as outras eram a Botelho e Rodrigues, mais a JCP, que é hoje a OCP. E eu, quando montei a farmácia fui ter com o Zé Custódio e perguntei-lhe como é que podíamos fazer. E ele disse-me: não te preocupes, fazes uma listagem do que queres e eu ponho-te lá isso. E o pagamento? É em letras. Eu pagava as letras e os encargos eram todos com ele. Tive muita gente que acreditou em mim. Acreditou que eu não ia abaixo. E pronto, comecei a trabalhar a sério e a coisa cresceu e conseguimos manter a casa.
O seu momento de encruzilhada foram aqueles três dias em Porto Covo?
Quando eu saí daqui naquela manhã, depois de a antiga dona me ter atirado aquele algarismo extra não sabia o que havia de fazer, por isso tive que ir sozinho para qualquer lado. Tinha proposto à minha mulher fazer uma segunda licenciatura para termos uma farmácia nossa e eu tive que cumprir a minha parte, que era comprar a farmácia.
Chegaram a pensar em emigrar?
Se não se houvesse o 25 de Abril, tínhamos ido para Moçambique para a barragem de Cahora Bassa. A minha mulher tinha acabado engenharia electrotécnica e pensámos nisto, mas acabámos por ficar por cá, fez as equivalências para farmácia e consegui comprar-lhe a farmácia. Acho que foi um percurso giro.
E as campanhas de vacinação nas farmácias?
Tivemos esta polémicas, mas eu sempre dei injecções. Havia uma altura em que dava mais de cem injecções no Inverno. Ali naquele bairro de Palma, só nós é que entrávamos ali para tratar as pessoas. Faziam-se muitos compostos para as gripes. Havia umas fórmulas com um analgésico e um antipirético associado, o Zicolon e o Comel. E as vitaminas C, as injectáveis, que se davam muito na altura.
Quais foram as maiores alterações na nossa área?
Para mim que vivi isto em tempo real, as modificações foram lentas, tirando o sistema informático que foi da noite para o dia, não senti esses saltos. A grande mudança foi a evolução da indústria que acabou com os manipulados. Até ao início dos anos 1960 só existia a ampicilina oral, o resto eram penincilinas injectáveis. A indústria tomou conta disto tudo e trouxe uma forma diferente de trabalhar. Mas como isso foi tudo tão lento, consegui sempre adaptar-me.
Chegaram a comemorar os 100 anos da farmácia?
Ainda não. Queria fazer a comemoração dos 125. que será daqui a 3 anos, se eu estiver bem. Queria fazer mesmo isso. Os Marques estiveram aqui 60 anos e eu já cá estou há 45. Há uma diferença muito pequenina entre os Marques e os Simplícios. E isto vai ficar na família, de certeza. Tenho 3 filhos, um fez Gestão hoteleira, a outra fez Microbiologia e outro fez Economia. Nenhum deles quer vir para aqui, mas também não têm necessidade, desde a alteração da lei da propriedade, basta manterem a equipa e gerir. A minha mulher diz muitas vezes que devíamos vender, mas depois eu faço o quê? Fazer crochê? Não, nada disso.
Agora que há uma enorme reconversão de prédios em alojamento local em Lisboa e tem uma filha formada em gestão hoteleira, imagina esta casa a voltar a ser um Hotel, tal como chegou a ser o Hotel Mafra?
Não, isso não. Ela não ia dar uma facada nesta casa assim, não. Farmácia é farmácia. Não consego imaginar aqui mais nada, de maneira nenhuma.
Sabemos que tem uma ligação às artes marciais, como foi o seu percurso?
Fiz Karaté e Kobudo durante 28 anos. Fiz outros tantos de Kido. Foram as artes marciais que me deram uma grande vitalidade, até mesmo para eliminar energias negativas e coisas assim. Não havia nada como levar uns sopapos. Levava uns sopapos e ficava logo bem. Foi muito bom manter uma atividade paralela com a farmácia. Eu era mesmo completamente obcecado com isto. Saía de casa, ia correr para o Estado Nacional, para o Estado Universitário. Vinha abrir a farmácia. Fechava a farmácia, pegava no equipamento e ia treinar. Saía do treino, ia jantar, vinha para a farmácia. Isto durante anos. E aos fins-de-semana saía para torneios em Espanha. Com belgas, com franceses, com italianos, com espanhóis. Foi muito giro. A Joana Vasconcelos foi a minha colega de Karaté. É verdade. A Joaninha. Nos anos 90, gordinha. Muito menos do que é hoje. O pai dela fazia trabalhos em ouro, anéis, filigrana, por aí. Tenho a certeza que foi influenciada pelos trabalhos do pai. Pratiquei artes marciais com muito gozo. Foi outra coisa. Podia ter feito três cursos superiores. Peguei-me àquilo e pronto. Só larguei aos 54. Ainda fiz uma tentativa, mas acabei com uma costela partida e desisti. Não tinha velocidade, não tinha força, não tinha elasticidade, não tinha nada. Mas tinha aquela maluqueira e voltei. Foi um combate curto, nem me deu tempo para respirar. Ataca, bomba, fratura da costela. Mas levantei-me.
Qual é o seu legado?
A equipa que formei e a ligação com a comunidade, que é muito forte. Sendo uma altura tão difícil de aceder aos centros de saúde e aos hospitais, esta farmácia mantém uma porta aberta e ajuda a resolver problemas. Acabamos por ter alguma utilidade. E qualquer um de nós sente isto, quando chegamos a um sítio e somos bem atendidos, ou melhor, não é bem atendidos, o atendimento não tem nada a ver com isto. Quando se consegue estabelecer empatia com a pessoa, com a outra pessoa, tudo funciona realmente bem. Funciona sempre bem, seja num stand de automóvel, seja num barbeiro, seja num restaurante, seja onde for. Se não houver essa empatia, as coisas não correm bem. E esta equipa consegue. Fazem isso muito bem. A minha intenção não era falar de mim, era falar da farmácia. Mas a farmácia também não tem história. A história que tem é ser muito velha, não é? Está em duas famílias há muitos anos. A Aguiar, por exemplo, esteve sempre na mesma família. Mas eu penso que a farmácia comunitária não pode deixar de existir. E nem todas podem ser automatizadas. Porque falta a componente humana. As pessoas precisam de ser compreendidas, precisam de ajuda. Não é só a facturação que conta. Olha, toma lá o papel, dá cá o medicamento. Isto não é farmácia de oficina, é um dispensador de medicamentos. Onde é que está o critério do aconselhamento? Ou ouvir o outro a chorar, que morreu a irmã, ou morreu a mãe, ou morreu o filho, e vem para aqui com lágrimas nos olhos. É verdade, cria-se um sentimento de estima tão grande, tão profundo, somos responsáveis por aquilo que ouvimos. Temos que dar seguimento àquilo. Isto é muito importante na farmácia. A farmácia é isto. Não é outra coisa. Foi aquilo que eu sempre senti na farmácia, aquilo que eu senti em mim, que tenho realmente alguma utilidade. E isto era gratificante. Eu sentia-me bem a ajudar. Por isso é que eu digo, a farmácia realmente é um mundo incrível. É uma coisa incrível, mas não é só pelos medicamentos que temos aqui. É pelo contacto directo. Eu gosto muito. Por isso é que continuo cá. Mas isto também só é possível se nós conseguimos entrar num sítio em que seja possível aplicarmos as nossas competências assim. Se andamos a saltar de um lado para o outro, não conseguimos fazer nada.
Agora vou mostrar aqui uma coisa. Eu uso barba desde os dezoito anos. Reparem, como é que era possível as pessoas acreditarem neste barbudo. Vinham aqui perguntar coisas e ele respondia e as pessoas ficavam satisfeitas e regressavam.
Tem um ar de sábio, não é?
Não, não sei, não sei. Mas repare que com esta cara havia muito poucos na nossa área. Pelo menos na altura. Que eu me lembre, aos dezoito anos não havia ninguém a usar barba assim. Nem sei porque é que me deu na cabeça de começar a usar barba. Mas, se calhar, até inspirava a confiança das pessoas. Quem sabe se era por causa da barba.