Desafios na Garantia do Acesso a Medicamentos: Ruturas de Stock e Impacto na Saúde Pública

Desafios na Garantia do Acesso a Medicamentos: Ruturas de Stock e Impacto na Saúde Pública

Artigo de Opinião Nila Badracim, Farmacêutica especialista em Farmácia Hospitalar

A garantia do acesso dos cidadãos aos medicamentos assume-se como uma das mais relevantes vertentes do direito fundamental à proteção da saúde.

A disponibilidade de medicamentos é um tema central para a Organização Mundial de Saúde (OMS), para as Autoridades Europeias e Nacionais. Constituindo, por norma, a segunda maior rúbrica de custos nas instituições hospitalares, os medicamentos e produtos de saúde adquiridos pela farmácia hospitalar devem, pela sua especificidade e elevado custo, cumprir com rigorosos critérios de qualidade e segurança.

Neste sentido, todos os intervenientes neste circuito têm como missão garantir o acesso contínuo e adequado aos medicamentos. Assim, as farmácias hospitalares devem organizar o seu processo de aquisição de medicamentos e produtos de saúde visando a otimização da terapêutica e evitando a sua interrupção. Os planos de contingência para a rutura de stock devem estar delineados.

A Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (INFARMED) divulgou no Relatório de Gestão da Disponibilidade de Medicamentos que em 2021 registaram-se 1785 ruturas de apresentações correspondentes a 863 medicamentos e 474 substâncias ativas. Destas, 239 ruturas apresentaram um impacto médio, ou seja, corresponderam a medicamentos com alternativas terapêuticas limitadas ou insuficientes (medicamentos com mesma substância ativa, diferente forma farmacêutica e/ou diferente dosagem e indicação clínica sobreponível), e 46 ruturas foram classificadas com impacto elevado na saúde dos cidadãos, representando medicamentos sem alternativa terapêutica comercializada em Portugal.

Uma rutura de medicamentos (também designada por uma escassez da fornecimento ou rutura de stock) pode ser uma falta temporária de medicamentos que será resolvida ao longo do tempo ou pode culminar numa revogação o que equivale à retirada permanente do medicamento do mercado. Esta última pode ser por decisão do titular de Autorização de Introdução no Mercado (AIM), ou por decisão do INFARMED decorrente de um problema de qualidade ou segurança de um medicamento. Caso não existam alternativas ao medicamento no mercado nacional, a acessibilidade à terapêutica necessária é garantida através do recurso a autorizações de utilização especial (AUE) ou excecional (AEX). Quando se verifica que o medicamento é imprescindível, o INFARMED desenvolve contactos com o responsável e com outros titulares de AIM de forma a incentivar a produção e manutenção no mercado destes medicamentos.

As ruturas de stock, comunicadas pelos titulares de AIM (TAIM) dos medicamentos, são uma eventualidade do processo produtivo e podem ter como origem diversas causas:

1) Dificuldades de fabrico: não conformidade com as Boas Práticas de Fabrico, por exemplo reprovação após uma inspeção por controlo inadequado das matérias-primas;

2) Problemas que afetam a qualidade dos medicamentos: A descoberta de um defeito de qualidade num lote de produção pode resultar na retenção deste lote impedindo que seja distribuído no mercado, ou, na recolha de um medicamento;

3) Problemas nas cadeias de fornecimento: Muitas fontes de substâncias ativas para medicamentos essenciais estão localizadas fora da União Europeia. A globalização do fabrico pode levar a que apenas um ou poucos locais de fabrico comercializem a nível global, o que pode provocar ruturas de fornecimento, também elas globais;

4) Causas económicas como as crises globais que afetam o orçamento da saúde de um país.

A decisão de retirar um medicamento do mercado pode ter várias razões. Caso o regime de formação e revisão dos preços dos medicamentos resulte na imposição de redução de preços, poderão surgir problemas de sustentabilidade para os operadores levando à descontinuação de produção e comercialização. Desta forma verifica-se um crescimento da exportação paralela de medicamentos para países europeus onde são praticados preços mais elevados. Os operadores devem assegurar primeiro o abastecimento regular do mercado nacional.

A circular informativa do INFARMED, publicada em junho de 2023, atualiza os medicamentos que estão com a exportação temporariamente suspensa. Abrange todos os fármacos críticos que estiveram em rutura no mês de maio, bem como os medicamentos que estejam a ser abastecidos ao abrigo de autorização de utilização excecional (101 apresentações de fármacos de várias categorias e substâncias ativas).

As limitações na disponibilidade de matérias-primas são uma realidade pela escassez efetiva do produto na sua origem e/ou por dificuldades associadas à cadeia logística, nomeadamente no transporte.

O amido (proveniente dos cereais) é uma matéria-prima utilizada como excipiente na maioria dos comprimidos. A guerra da Ucrânia resultou no aumento dos custos de produção dos medicamentos e a falta de amido, que sofreu um aumento de preços a rondar os 300%, está também a gerar situações de rutura de stock ou de reiterada indisponibilidade de medicamentos como, por exemplo, o semaglutido, o clonazepam e a amoxicilina;

5) Aumento inesperado da procura: quando um  TAIM entra num novo mercado, pode subestimar a procura pelo medicamento. O desequilíbrio que resulta entre o seu fornecimento planeado e a real procura pode originar uma rutura temporária. Crises de saúde mundiais ou regionais, por exemplo, uma pandemia, podem resultar numa procura inesperadamente elevada de um medicamento.

O país tem que estar preparado para responder a estes picos de procura e devem ser definidos níveis mínimos de stock de medicamentos considerados como essenciais que poderiam estar alocados a uma reserva estratégica de medicamentos.

O INFARMED disponibiliza a informação referente a medicamentos cujas dificuldades de aprovisionamento possam ter impacto no abastecimento nacional: previsão de ruturas de stock de medicamentos, o motivo da rutura, a data previsível do reabastecimento normal e possíveis medidas de mitigação. Após consulta desta informação, o farmacêutico hospitalar avalia a situação e averigua a existência de alternativas terapêuticas comercializadas (medicamentos com a mesma substância ativa ou outros medicamentos com as mesmas indicações terapêuticas).

Em situações de impacto elevado, ou seja, quando não existem alternativas terapêuticas ou se tratem de medicamentos essenciais (ou órfãos) o INFARMED procede à avaliação da situação, tentando minimizar os seus efeitos. São procuradas alternativas terapêuticas, através da consulta a peritos, ou às agências congéneres, para saber se o medicamento está comercializado em algum estado membro, o que permite desencadear os mecanismos de AUE de medicamentos, para importação de medicamentos de outros países e envolver o titular de AIM na resolução do problema da rutura (para solicitação de AEX).

Os motivos principais para o agravamento do problema das ruturas e falhas de abastecimento de medicamentos no mercado nacional estão relacionados com o custo e dificuldade de acesso a algumas matérias-primas e substâncias ativas. É também necessário adotar uma mecanismo que crie condições aliciantes para a indústria voltar a produzir na Europa.

A rutura de medicamentos pode afetar os doentes de várias formas: falha e/ou interrupções do regime terapêutico; substituição por alternativas menos eficazes ou risco de aumento de acontecimentos adversos. Independentemente da origem, para a maioria das situações resultantes da ausência de um determinado medicamento no mercado nacional, são sempre procuradas alternativas que garantam ao doente a continuidade no acesso à sua terapêutica.

Entre as soluções propostas pelos farmacêuticos hospitalares encontram-se a aquisição da mesma substância ativa a empresas com disponibilidade de fornecimento, outras vias de administração, formas de apresentação e dosagens. Recorre-se muitas vezes à aquisição do mesmo medicamento a fontes alternativas autorizadas (AUE) que implicam na maioria das vezes custos superiores. A preparação de formulações magistrais, se aplicável, também poderá ser considerada. O recurso a alternativas terapêuticas deve ser suportado na mais recente evidência e literatura técnico-científica de forma a garantir a segurança e os resultados clínicos desejados.

Algumas destas soluções representam desafios na gestão diária da atividade do farmacêutico hospitalar em todos os setores, nomeadamente na necessidade de despoletar processos urgentes de aquisição, solicitação de nova prescrição médica, parametrização no sistema informático e ainda garantir a disseminação interna das medidas a implementar durante a rutura, com garantia da monitorização dos resultados da alternativa proposta.

As dificuldades de acesso aos medicamentos, devidas a ruturas no circuito do medicamento, resultam de diversos fatores, sendo recomendada uma resposta multidisciplinar e ativa às falhas de abastecimento, com o intuito de minimizar o seu impacto nos na condição clínica dos doentes.

É crucial a articulação efetiva com intervenientes da cadeia de abastecimento do medicamento, com os doentes, com as entidades competentes, com outros profissionais de saúde envolvidos no circuito do medicamento e com as comissões técnicas hospitalares (Farmácia e Terapêutica e Ética (se off-label)).

Decorrente do elevado número de medicamentos indisponíveis atualmente, recomenda-se a partilha de soluções e a implementação de estratégias de gestão.