Descrições de farmacêuticos
Para conhecer a realidade da farmácia comunitária importa falar com os profissionais, ouvir os utentes e ler artigos ou estudos publicados. Mas para perceber a impressão que esta actividade deixa no cidadão comum (ou na memória colectiva), importa recordar as personagens que os escritores, dramaturgos e guionistas criaram a partir deste nobre e antigo ofício.
Numa leitura rápida pode dizer-se que os farmacêuticos que trabalham em farmácias e mantém as portas abertas nas aldeias do interior ou nas maiores cidades não têm exercido grande influência sobre escritores ou dramaturgos. As poucas personagens farmacêuticas de ficção passaram ao lado da história da literatura ou do cinema e não lhes são atribuídas características de heróis, nem tampouco de vilões. Servem quase sempre para dar contexto ou para ridicularizar costumes e comportamentos censuráveis.
Anton Tchekhov, escritor e dramaturgo russo do século XIX, tem um conto com o título “A Mulher do Farmacêutico”, que resume em poucas palavras a opinião geral daquela época sobre os profissionais de farmácia: são interesseiros, avarentos, desagradáveis e acabam enganados pelas suas mulheres.
Avançando quase um século, Milan Kundera, um dos mais conhecidos escritores checos, entretanto naturalizado francês, refere-se à classe farmacêutica, no romance “Identidade”, desta forma: “pobres farmacêuticos reduzidos a vendedores de caixas e frascos”.
No universo da Língua Portuguesa, a telenovela da Globo “Pedra Sobre Pedra” apresenta uma personagem farmacêutica. Chama-se Diamantino e é casado com Úrsula, uma mulher com interesses esotéricos que se envolve com um fotógrafo de visita à cidade. Este fotógrafo é cobiçado por outras mulheres e ameaçado pelos vários maridos traídos. Após a morte misteriosa do fotógrafo, Diamantino é atingido por um raio e fica inconsciente. Depois de recuperar os sentidos é levado para casa pela mulher que se surpreende com uma súbita alteração: na intimidade, o corpo e o rosto de Diamantino transmuda-se para o do fotógrafo falecido. Através deste truque narrativo, os guionistas da novela acabam por retratar o farmacêutico como o “testa de ferro” do verdadeiro amante de Úrsula. Nesta história de ficção, o farmacêutico mantém-se como marido apenas no plano formal, porque quem recebe os benefícios da conjugalidade é uma entidade estranha ao matrimónio. É possível que este episódio místico-sobrenatural seja inspirado no romance de Jorge Amado “Dona Flor e os seus dois Maridos”. D. Flor é uma jovem viúva que contrai segundas núpcias com um distinto farmacêutico da cidade e dono da Farmácia Científica. No entanto, apesar da boa aparência e posição social do segundo marido, D. Flor não consegue esquecer o primeiro e pede aos espíritos para voltar a vê-lo. Pouco tempo depois do regresso ao mundo dos vivos, ela inicia uma relação paralela com o defunto. Neste romance, Jorge Amado reconhece a coexistência entre o mundo racional e de base científica do farmacêutico e as velhas tradições do candomblé a que D. Flor recorreu para recuperar o marido morto.
Em Portugal, Camilo Castelo Branco é talvez o autor que dedica mais atenção aos farmacêuticos. No conto “Aventuras de um Boticário de Aldeia”, Camilo descreve o boticário como prestável, com uma inteligência superior à de “alguns cirurgiões daquela redondeza” e um conquistador “das melhores raparigas da freguesia”. Contudo, ao avançarmos nas descrições físicas da personagem, percebemos que esta era “incapaz das honras anatómicas do romance”, uma vez que “tinha a cara vermelha como um molho de beterrabas” e “as ventas eram dois vulcões que resfolegavam lavas de simonte”.
Apesar da contundência, Camilo reincide em regressar à botica num quase romance. A novela “Eusébio Macário” tem como personagem principal um farmacêutico de província que vive obcecado com o casamento da filha e com a ideia de o filho aprender a arte da botica e os segredos das plantas medicinais e das tinturas, das hóstias, dos óvulos e dos clisteres. Esta é, porém, uma caricatura do estilo realista, em que o autor se apropria da personagem Eusébio Macário, como representante de uma classe, para fazer chacota através de um discurso de ignorante ilustrado com laivos de ressentimento. Mais uma vez, a depreciação moral e física acaba por ser a pedra de toque na abordagem à classe farmacêutica.
Eça de Queiroz não apresenta alternativas à apreciação físico-psicológica dos farmacêuticos e usa do mesmo desdém com que qualifica os portugueses do seu tempo: gente macilenta, amarelada, gananciosa e mesquinha. Todas estas personagens expressam discursos desagradáveis, têm fisionomias repulsivas e demonstram as piores intenções atrás do balcão, assim recorda Alberto Pessoa no seu artigo: “Médico, farmacêutico e pessoal de farmácia na obra de Eça de Queiroz”. Este investigador encontrou nada mais do que acinte e sobranceria em relação aos farmacêuticos: “nunca perde a ocasião de os meter a ridículo, pendurando da boca os mais assombrosos discursos”, com o intuito de “expor as opiniões que desagradavam ao autor”.
O motivo que o levou a escolher os farmacêuticos como opróbrio não se sabe, mas esta desconsideração por parte de alguns utentes e decisores públicos mantém-se até aos dias de hoje. Não podemos, contudo, esquecer a ostentação de certos farmacêuticos nos anos de abundância que teve mais efeitos deletérios do que a maledicência dos escritores. Até porque a literatura também perdeu uma grande parte da sua influência após a invenção do cinema e da televisão por cabo, daí que os esforços para promover profissões nos ecrãs seja mais relevante do que fazer encomendas a escritores para as enaltecerem.
Como exemplo desta tendência de “profissional placement” temos o caso da telenovela portuguesa da SIC, “Nazaré”, que incluiu uma personagem enfermeira patrocinada pela respectiva Ordem, que orçou os custos como investimento de promoção, o que gerou alguma celeuma entre os próprios profissionais. Da televisão passamos para o grande ecrã e para o filme “As Sufragistas” em que uma farmacêutica do início do século XX parece ter como função redimir as caricaturas que a literatura nos tem oferecido. Se tiverem oportunidade de ver o filme poderão confirmar como esta personagem é dinâmica, generosa (não cobra aos pobres), proactiva e inspiradora, arriscando além das prerrogativas da profissão (ausculta crianças, faz diagnósticos e ensina técnicas de defesa a outras mulheres). Além disto ainda tem tempo para liderar as reuniões secretas das sufragistas nas traseiras da farmácia. Não fora Helena Bonham Carter uma atriz insuspeita (neste filme contracena com Meryl Streep e Carey Mulligan) poderíamos desconfiar que havia sido endossada pela congénere inglesa da Ordem dos Farmacêuticos.
Depois desta abordagem laudatória ao papel dos farmacêuticos falta falar de uma série distribuída pela Netflix em 2020 e que tem como título “The Pharmacist”. Este documentário em quatro episódios demonstra, de forma mais próxima, não apenas a importância dos farmacêuticos como o último elo na cadeia entre o medicamento e o doente, mas também as dificuldades, os dilemas e as oportunidades de melhorar a vida das pessoas que todos os dias entram na farmácia. Sobre as contingências deste farmacêutico numa comunidade dos Estados Unidos falaremos mais adiante e com mais detalhe.