Alexandra Rosa, tem 41 anos e começou a fazer investigação no 2º ano da faculdade. Fez uma parte do Doutoramento na Califórnia e depois de terminar o Pós-doutoramento em Portugal cansou-se da falta de estabilidade na Academia e concorreu para um emprego na Indústria. Atualmente, trabalha como Diretora de Assuntos Regulamentares na multinacional IQVIA.
Como é que surgiu a oportunidade para trabalhar em investigação?
A oportunidade para trabalhar em investigação surgiu ainda durante a licenciatura em Ciências Farmacêuticas, durante o segundo ano para ser mais precisa. Um dos grupos de Investigação da altura, na área de Neurociências, procurava colaboradores e, como era uma área que me entusiasmava bastante (ainda entusiasma!), manifestei o meu interesse acabando por ser selecionada. Comecei a auxiliar os investigadores do laboratório, depois tive o meu primeiro projeto, que levou ao segundo e, quando cheguei ao final do curso, já tinha o meu primeiro artigo submetido, o que foi determinante para a entrada no doutoramento.
Era uma ambição antiga?
Trabalhar em investigação não era apenas uma “ambição antiga” – era de fato a razão para ter escolhido a Licenciatura em Ciências Farmacêuticas. Por isso, quando fui selecionada para trabalhar naquele laboratório, a alegria e a motivação foram imensas: todo o meu horário de curso foi ajustado para conseguir ter pelo menos um dia por semana no laboratório. E assim foi toda a restante licenciatura: uma correria alucinante (mas muito feliz!) entre o curso e o laboratório.
Quais são os principais atractivos deste trabalho?
O que mais me apaixonava na investigação era o momento da descoberta, aquele em que descobres e sabes algo antes de qualquer outra pessoa, o chamado momento “Eureka”. Claro que, na maioria das vezes, estes momentos não são descobertas incríveis tipo a cura para uma doença incurável e, para chegar a um bom resultado, tens que estudar muito, planear muito e passar por muitas experiências falhadas. É, de fato, necessário uma pessoa ser muito meticulosa e paciente. Outro ponto muito positivo na investigação científica é que tens que apresentar e discutir o teu trabalho com os teus pares, pelo que acabas por viajar bastante para participar em congressos e conhecer pessoas e locais muito diferentes. E destas interações muitas vezes surgem colaborações de trabalho que permitem avanços muito significativas nos teus projetos.
E as dificuldades?
Do ponto de vista de recursos humanos a grande dificuldade, a meu ver, é conseguir um trabalho na Academia depois do convencional doutoramento ou pós-doutoramento. Este não é um problema exclusivo de Portugal, é generalizado, porque as vagas são limitadas, mas em países em que o investimento em ciência é reduzido (como o nosso) esse problema sente-se muito mais. Na altura em que deixei a Academia, há cerca de 6 anos, existiam pouquíssimos contratos de trabalho para pós-doutorados: a maioria destes investigadores vivia com bolsas de 3 anos ou 6 anos, período ao final do qual se deveria candidatar a um novo concurso nacional. Estes “contratos” incluíam apenas 12 salários por ano com seguro social voluntário (ou seja, algo que muitos trabalhadores dão por garantido como subsídios de alimentação, de Natal, ou de férias não estavam incluídos nem havia acesso a subsídio de desemprego quando as bolsas terminavam). Hoje em dia já existem mais contratos de trabalho para pós-doutorados, mas ainda assim muitos profissionais de excelência acabam por ter que sair do país para poder continuar a investigar. Em Portugal existe também ainda muito “in breeding” nas instituições, ou seja, as pessoas acabam por se formar e ficar onde sempre estiveram sem que isso signifique obrigatoriamente que são os candidatos mais apropriados. A alternativa a investigar é mudar de área, mas ainda são poucas as empresas portuguesas capazes de absorver doutorados (o doutoramento é visto mais como um “handicap” e não como uma mais-valia). O chamado “Publish or perrish”, também pode ser problemático: os projectos e salários das pessoas que neles trabalham dependem de financiamento e os financiamentos dependem de publicações o que leva os laboratórios menos competitivos a perder financiamento e a ficar para trás. Isto acontece também em áreas menos “trendy” em que a aplicabilidade da investigação não parece tão próxima (investigação mais fundamental) ou em áreas muito específicas – por exemplo, os fatores de impacto de artigos de Neurociências são muito mais baixos que os fatores de impacto de revistas generalistas como a Cell ou a Nature.
Pode falar-nos um pouco sobre o seu tema de investigação?
Os meus temas foram sempre na área das Neurociências: comecei por estudar o stress oxidativo em neurónios e nas suas células “de suporte”, os astrócitos, durante a licenciatura. No doutoramento quis saber um pouco mais sobre como os neurónios são gerados no cérebro adulto, de modo a poder usar esses processos na reparação cerebral. Este tema é muito interessante porque os sistemas nervoso e vascular andam de “braços dados” e sabendo como se comportam normalmente poderemos saber como intervir em caso de patologia (como em certos cancros). Se tiverem interesse nesta temática podem aceder aqui a um dos artigos que publiquei.
No pós-doutoramento comecei por estudar um pouco o desenvolvimento embrionário da espinal medula e como isso afetava o movimento no adulto. Depois surgiu a oportunidade de trabalhar num projecto na doença de Parkinson. O meu último trabalho em investigação consistiu na avaliação do efeito de uma molécula, o ácido tauroursodeoxicólico, na capacidade motora de animais que modelavam a doença de Parkinson. Foi um projeto muito completo porque estive envolvida em todas as fases desde o planeamento até à execução e à escrita do artigo final e tive na minha equipa pessoas estupendas de diferentes instituições. A publicação está disponível aqui.
Como era o seu dia-a-dia no trabalho? E nas horas livres?
Não existem horas fixas de trabalho em investigação, não existem rotinas! Lembro-me de uma vez sair do laboratório já de madrugada e de apanhar um susto porque passou ao meu lado um colega (provavelmente ele também se assustou); lembro-me de alimentar ou tratar células em fins-de-semana e feriados. Fazer experiências é um pouco como cozinhar, juntam-se os ingredientes, seguem-se os vários passos e “voilá!”
Às vezes espera-se mesmo muito por um resultado: a ciência dos filmes e a real é bem diferente: nos filmes os cientistas colocam um tubo numa centrífuga e sai uma cura para um vírus emergente, na realidade é possível ficar dias ou meses à espera de um resultado. Depois de teres o resultado tens que analisá-lo e planear novas experiências. No final tens que contar uma história com os resultados. Quando estás longe de casa, como aconteceu no meu doutoramento, aproveitas para viajar e conhecer sítios novos. Como estive algum tempo em Los Angeles aproveitei para conhecer a cidade e os seus locais mais icónicos como Hollywood ou El Pueblo. Depois alarguei a área de descoberta e fui a outros locais como Las Vegas, o Grand Canyon, o Parque Nacional das Sequóias e o Hawaii. Foram tempos de “Work hard, play harder”.
Como foi a estadia no Estados Unidos?
Parte do meu doutoramento foi feito na University of Southern California (USC) em Los Angeles, a rival da conhecida UCLA. Foi sinceramente uma das vivências mais enriquecedoras que pude experienciar. Não só porque tive a oportunidade de apreender técnicas necessárias ao meu projeto que não existiam em Portugal (e mais tarde ensiná-las aos nossos investigadores para que as pudessem usar nos seus projetos), mas também porque conheci pessoas de “backgrounds” completamente diferentes que me ensinaram a ser uma pessoa muito mais tolerante. E, claro, viajei bastante! Acho sinceramente que uma experiência fora do nosso pais de origem deveria ser obrigatória num mundo cada vez global.
Quais as principais diferenças de funcionamento em relação às universidades portuguesas?
Curiosamente, nunca senti que a USC funcionasse melhor que qualquer universidade portuguesa. A grande diferença era o financiamento: como era uma universidade privada tinha equipamentos de topo e muitos laboratórios. Tantos que alguns estavam vazios. Em termos de vida social existe toda uma cultura universitária nos EUA que não existe em Portugal: o desporto universitário (neste caso o basebol), as datas festivas (como o Halloween e o Thanksgiving) e as paradas universitárias são tal e qual como nos filmes!
E o pós-doutoramento?
A seguir ao doutoramento, o pós-doutoramento foi um passo que fez sentido, até porque após uma breve sondagem de alternativas a nível de empresas em Portugal, onde pretendia continuar, as opções pareciam bastante reduzidas: praticamente não existiam vagas para doutorados. Permaneci assim a fazer investigação por mais 6 anos.
Quais foram as situações mais difíceis que presenciou em contexto académico?
Penso que as maiores dificuldades a nível nacional na Academia foram a limitação do financiamento e também a falta de oportunidades de progressão de carreira. Estes dois fatores acabaram por contribuir de um modo decisivo para a minha transição da Academia para a Indústria Farmacêutica.
Foi uma transição difícil?
No ano em que a minha bolsa de pós-doutoramento terminou, não abriram concursos para novas bolsas nem concursos para novos projectos (não havia sequer previsão de quando abririam novos concursos). Para continuar a fazer investigação em Portugal teria que esperar meses por um novo concurso sem qualquer garantia de que iria obter bolsa ou novo projeto com rúbrica para pagamento de salário. Durante este tempo de espera não receberia qualquer subsídio de desemprego, uma vez que naquela altura os bolseiros não eram elegíveis. Esta situação para mim foi um ponto de viragem: tinha acabado de ser mãe pela primeira vez e não me queria colocar (nem à minha família) nesta situação precária. Decidi que poderia continuar a participar na área de investigação de outro modo: poderia trabalhar na Indústria Farmacêutica. Transitar da Academia para a Indústria não é simples e, no meu caso, estava já com 35 anos pelo que já era considerada “velha” para a maioria das oportunidades de “entry level”. Ainda assim resolvi tentar, comecei uma formação em Indústria Farmacêutica e felizmente cerca de 6 meses depois (ainda antes de ter terminado a formação) iniciava funções numa pequena empresa na área regulamentar. A pandemia, não obstante o impacto negativo, fez avançar em anos-luz o trabalho remoto e abriu a porta a imensas oportunidades de carreira. Não posso dizer que a experiência na Academia tenha sido uma mais-valia para conseguir um primeiro trabalho (penso que terá sido o oposto), mas foi, sem dúvida, uma mais-valia na progressão da carreira.
Como é o seu dia-a-dia no novo emprego?
Atualmente sou diretora associada de assuntos regulamentares numa CRO multinacional (IQVIA) e adoro. O dia-a-dia continua a ser tudo menos monótono: tenho reuniões com clientes de todo o mundo que querem colocar produtos de natureza muito díspar em diferentes fases de desenvolvimento e em diferentes mercados. A minha área de intervenção é o pré-registo por isso continuo muito ligada à investigação pré-clínica e clínica. A ideia é encontrar o melhor percurso para introdução no mercado de cada produto em particular, em diferentes áreas geográficas (como a União Europeia, os Estados Unidos da América ou o Japão). Num mundo com frequentes mudanças regulamentares e constantes avanços tecnológicos, há muitas variáveis em cada projeto pelo que se torna um trabalho extremamente estimulante. E, algo que valorizo muito, sinto que tenho um papel ativo em fazer chegar medicamentos aos doentes que ainda não têm (ou têm poucas) alternativas terapêuticas.
Além do seu trabalho como Directora de Assuntos Regulamentares na IQVIA também faz parte da Sociedade de Profissionais de Assuntos Regulamentares. Quer falar-nos um pouco das actividades desta associação?
A Sociedade de Profissionais de Assuntos Regulamentares (RAPS) é uma organização global de profissionais da área regulamentar e da qualidade de produtos de saúde, incluindo dispositivos médicos, de diagnóstico e saúde digital, de produtos farmacêuticos e biológicos. Está sediada nos EUA mas tem representação em todo o mundo. A RAPS apoia a profissão regulamentar com formações, padrões profissionais, publicações, “networking”, desenvolvimento de carreira e outros recursos inclusive através da Certificação de Assuntos Regulatórios (RAC), uma credencial que reconhece a excelência regulamentar. O grupo de “local networking” (LNG) português foi fundado em 2022, pouco depois da rede espanhola (estive envolvida também no projeto espanhol, mas atualmente estou mais focada no português, com mais três colegas da área regulamentar). Existe um fórum para discutir assuntos da área, dinamizamos encontros profissionais e “webinars” a que podem aceder. A RAPS PT LNG também pode ser seguida no LinkedIn.
Chegou a trabalhar em Farmácia Comunitária ou teve apenas a experiência do estágio?
Tive apenas a experiência de estágio e ficou claro que aquela não era a área que me fazia feliz. No entanto respeito imenso os profissionais de Farmácia Comunitária, embora seja ampla a possibilidade de intervenção nos cuidados de saúde, a interação com os utentes pode ser desafiante e trata-se também de um trabalho muito físico.
Como vê a evolução da profissão farmacêutica em Portugal?
Sinceramente penso que podemos evoluir mais. Acho que é muito limitante ainda sermos vistos como vendedores de caixinhas de medicamentos quando temos colegas investigadores e gestores em diversas áreas como a regulamentar, a hospitalar, o marketing, etc.
Todos os anos há muitos alunos finalistas do secundário a preparar a candidatura à universidade. Que descrição faria do curso de Ciências Farmacêuticas e das saídas profissionais para ajudar estes candidatos a decidir?
A primeira informação que se deveria passar a estes finalistas, a meu ver, é que hoje em dia um curso não define a tua vida profissional futura. Com a implementação de Bolonha podes ter um curso base e com esse mesmo aceder a uma infinidade de mestrados. É importante saber isto porque as pessoas têm que ter noção que o mundo está cada vez mais competitivo. Por exemplo, se trabalhares na área regulamentar não vais ter apenas Farmacêuticos a competir pelas tuas vagas de trabalho, vais ter Biólogos, Bioquímicos, etc. E isto não é obrigatoriamente mau, é uma motivação extra para nos tornarmos mais competitivos e melhores profissionais. Em relação ao curso de Ciências Farmacêuticas é um curso extremamente exigente, mas muito completo. Não sais da faculdade a saber trabalhar, claro, mas sais com ferramentas para o conseguires fazer e para crescer. E, claro, existem várias áreas de intervenção – umas óbvias, como a Farmácia Comunitária ou Hospitalar, mas também outras menos óbvias mas igualmente (ou mais, dependendo dos gostos) desafiantes e recompensadoras.
Quais são os seus planos a médio prazo?
Os meus planos a médio prazo são continuar a evoluir na área de pré-registo – para mim a progressão de carreira é essencial na manutenção da motivação. Tenho a sorte de trabalhar numa equipa muito experiente e quero absorver tudo o que for possível. A nível pessoal quero voltar a viajar e incutir esse gosto nos meus filhos que até aqui foram muito pequeninos para tirarem partido disso.