Farmacêuticos pelo mundo: Alexandre Matos

Alexandre Matos começou a trabalhar na farmácia das Minas da Panasqueira e agora, aos 43 anos, exerce funções de Farmacêutico Hospitalar na cidade de Dundee, na Escócia, depois de ter passado pela Irlanda, Inglaterra e por uma experiência de quase um ano na China.

Em que momento decidiu sair de Portugal?
Quando, há quase 20 anos iniciava a minha carreira numa pequena farmácia de aldeia no Couto Mineiro das Minas da Panasqueira não imaginava as voltas que a vida viria a dar. Passei por vários países e continentes com um percurso que me permitiu evoluir, conhecer diferentes culturas e crescer profissionalmente. Terminada a universidade, ainda não tinha tomado o gosto por viajar ou tinha sequer posto um pé dentro de um avião, mas aos poucos alguma inquietação se foi instalando, e passado algum tempo a convicção de uma carreira em Portugal foi dando lugar à curiosidade de trabalhar noutros países, viver outras culturas e conhecer outras realidades.
Num tempo anterior ao Skype e depois de muita pesquisa e algumas entrevistas telefónicas com agências de emprego no estrangeiro, recebi uma oferta de emprego da Irlanda. Aos poucos as dúvidas começavam a pairar no ar. Estaria a tomar a decisão correta, estaria preparado para trabalhar num sistema de saúde diferente, estaria preparado para comunicar efetivamente em inglês?
Começou aí a principal lição que tiro de uma vida de desafios profissionais: com suficiente preparação e dedicação conseguimos ultrapassar todos os obstáculos. Enquanto tratava das questões burocráticas e reunia todos os documentos necessários ao registo na Ordem dos Farmacêuticos irlandesa passava simultaneamente o meu tempo livre na biblioteca da Faculdade de Farmácia a ler literatura médica em inglês, a tirar notas e a familiarizar-me com a nomenclatura inglesa.
Reunidos os requisitos burocráticos, facilitados pelo facto de se tratar de um país da União Europeia, embarcava pela primeira vez num avião rumo à República da Irlanda e rumo a uma vida profissional no estrangeiro. O destino era Waterford, uma cidade do Sul onde vivi durante 5 anos. Do povo irlandês só posso dizer coisas boas: hospitaleiro, acolhedor e muito animado desde que num Pub com uma Guiness na mão.
Profissionalmente comecei por gerir uma farmácia em Enniscorthy, na região de Waterford, onde comecei por notar algumas das principais diferenças em relação a Portugal: normalmente existe apenas um farmacêutico por farmácia, exceto em farmácias com muito movimento; o farmacêutico tem de aprovar todas a receitas dispensadas na farmácia; as receitas são dispensadas em dose unitária; o farmacêutico tem autoridade e responsabilidade (efetiva) por todos atos efetuados na farmácia; existe um maior respeito e apreço pela profissão; e os Medicamentos Sujeitos a Receita Médica apenas são dispensados mediante receita médica.
Sendo recém-licenciado em Portugal, esta passagem a Diretor Técnico de uma farmácia, num país diferente, com uma língua diferente e um sistema de saúde diferente não se fez sem os seus desafios. Mais uma vez com dedicação e estudo acabei por passar a gestor do grupo de farmácias da qual esta farmácia fazia parte. Devo também referir que uma outra diferença em relação às minhas experiências em Portugal é que nos outros países em que trabalhei, quando és contratado para gerir uma farmácia ou um departamento os donos da farmácia ou os chefes de departamento não intervêm na tua gestão apenas supervisionam os resultados.


Passados 5 anos na Irlanda começou a surgir aquele mesmo sentimento de inquietação. Talvez seja o sentimento de querer voltar para Portugal ou talvez uma vontade de explorar mais. Surgiu assim a ideia de abandonar a Irlanda e aproveitar para viajar antes de regressar à pátria. Mas viajar por uma ou duas semanas, visitar outros países na Europa já tinha feito durante esses 5 anos. Rumina então a ideia de algo mais ambicioso, algo mais longínquo, uma pausa deste mundo dos medicamentos. De entre conversas de pub com novos amigos irlandeses surge a ideia de viajar pelo Oriente. E esta ideia evolui também para trabalhar no Oriente. Mas em que área? É aí que surge a ideia do ensino. Mais uma vez vem a fase da pesquisa e da preparação. Pesquisa de áreas de ensino, obtenção de qualificações formais de ensino e conhecimentos de língua inglesa, além de pesquisas e contactos com agências de emprego no Oriente.
Estabelecidos os contactos e obtidos vistos eis que me encontro noutro avião de malas feitas para uma outra longa estadia. Destino: China. Bilhete: só de ida. Profissão: professor de inglês.

Como foi trabalhar na China?
Aterrado em Pequim, as angústias, desta vez, são diferentes, talvez devido a preconceitos ocidentais, mas os receios são sobre temas como segurança e liberdade, num país onde a liberdade de expressão é restrita e receio do desconhecido em geral. Além dos receios, também surgiram dúvidas sobre a veracidade do emprego. Na porta das chegadas tinha efetivamente à minha espera a jovem chinesa com quem falara várias vezes ao telefone e que me encaminhou para o metro em direcção ao hotel e não me meteu numa carrinha de vidros fumados para tráfico de órgãos… como algumas pessoas em Portugal receavam.
Depois de tanta preparação e angústia relativamente ao sucesso desta aventura, procurava agora, numa simples cama de hotel, recuperar do jet lag e encarar a realidade de que estava de facto na China e em breve seria um farmacêutico a dar aulas de inglês a crianças chinesas. Simultaneamente tentava habituar-me ao clima sufocante do Verão de Pequim, uma mistura de humidade, calor e poluição, enquanto esperava por saber em que escola ira efetivamente trabalhar.
Da minha experiência da vida na China, parece-me que as coisas se fazem sem grande planeamento ou método, ou assim pode parecer ao incauto waiguoren (estrangeiro) sem o domínio do mandarim, a recuperar do Jet Lag, e na incerteza do que encontrará depois da viagem de comboio de 16 horas rumo a uma terra cujo nome ainda não descobrira. Explicando: depois de alguns dias em Pequim a jovem chinesa da agência de emprego lá foi elaborando no seu inglês limitado que me ia colocar numa escola, mas ainda não sabia qual, onde ou quando, mas seria nos próximos dias…
Enquanto esperava e tentava não desesperar, aproveitei para visitar as atrações turísticas da cidade. Quando estava próximo da cidade proibida o telefone toca e do outro lado a voz apressada explica: já tens escola e um bilhete reservado, mas o comboio parte dentro de 2 horas rumo a… (o nome de um lugar incompreensível). Depois de uma grande correria e de 16 horas de viagem eis que chego à cidade que seria a minha casa nos 6 meses seguintes e que eventualmente descobri chamar-se Yuyao e (numa altura antes das aplicações com GPS nos telemóveis) se situava a Sul de Shangai.
A experiência de professor teve os seus desafios e foi muito diferente da profissão farmacêutica, além de muito enriquecedora. Do quotidiano o mais marcante foi, onde quer que me deslocasse, apenas por ser estrangeiro e ocidental, era visto como uma pseudo-celebridade com direito a pedidos de autógrafos e fotografias. Das pessoas que conheci, com quem trabalhei e dos inúmeros chineses com quem compartilhei longas viagens de comboio e de autocarro apenas boas palavras e recordações, de atos de generosidade, sorrisos envergonhados e muitas histórias partilhadas no inglês limitado (da parte deles), mandarim ainda mais limitado (da minha parte) e com muitos gestos à mistura.
Sinto tristeza apenas por não ter conseguido renovar o visto para continuar a explorar o país e um pouco mais da cultura chinesa por um novo ano letivo. Depois de terminar o contrato e de alguns meses a viajar sem destino pela China e pelo Japão chegou a altura do regresso ao Ocidente, destino Portugal.

E a passagem por Portugal?
Depois de cerca de 6 anos pelo estrangeiro sentia-me preparado para voltar a Portugal… infelizmente também descobri que o país não se encontrava aberto ao regresso dos seus emigrantes. Depois de cerca de seis meses e de envio centenas de currículos, cartas de apresentação, contactos telefónicos, não tive nenhuma oferta de emprego, na maioria dos casos diziam que preferiam contratar recém-licenciados aos quais o estado comparticipava parte dos seus ordenados.
Desiludido com o país e a falta de oportunidades restava-me novamente a opção da emigração, em que há muito mais oportunidades do que no meu próprio país. Resignado também com a triste realidade que saindo novamente do país seria agora mais do que apenas uma experiência, mas uma necessidade e uma escolha provavelmente para não regressar até à reforma.

Qual foi o destino desta vez?
Como o espírito de aventura ainda não tinha esmorecido, a escolha foi pelo desconhecido. Estive muito perto de ir trabalhar em farmácia comunitária em Angola, mas com os atrasos para a obtenção do visto de trabalho acabei por voltar às ilhas britânicas, desta vez à terra de Sua Majestade – Inglaterra.
Depois de visitas exploratórias e mais algumas entrevistas de emprego aceitei a oferta para gerir a abertura de uma farmácia numa cadeia de supermercados, a ASDA. Não posso deixar passar alguma amargura por não terem confiado em mim em Portugal para um emprego em Farmácia Comunitária, quase pelo ordenado mínimo, e acabado de chegar a Inglaterra, tendo por base a minha experiência anterior, confiaram em mim para gerir a abertura de uma nova farmácia, contratar a minha equipa, ser responsável pela gestão diária e pelo planeamento a longo prazo do projeto.

Há muitas diferenças em relação à Irlanda?
Creio que em Inglaterra o farmacêutico tem mais responsabilidades clínicas e possui diferentes áreas onde pode trabalhar e desenvolver a carreira.

E a mudança de Inglaterra para a Escócia?
Depois de 5 anos a trabalhar em Inglaterra para a ASDA e alguma evolução dentro da companhia comecei a sentir que o futuro da profissão farmacêutica estava mais na área clínica do que na gestão farmacêutica. Assim procurei redirecionar a minha carreira de forma a acompanhar essa evolução. Voltei à universidade, fiz estágios com médicos de família e tornei-me farmacêutico prescritor. Após terminar esta fase, deixei a ASDA para trabalhar em consultórios médicos com responsabilidades de prescrição. Também deixei de trabalhar para entidades privadas e passei a fazer parte do sistema Nacional de Saúde Britânico (NHS). Entretanto, deixei os consultórios médicos e aceitei um cargo de Farmacêutico prescritor numa prisão inglesa com responsabilidade pelos serviços farmacêuticos de todas as prisões do Noroeste Inglês. Nessa altura, a minha filha nasceu e, por motivos familiares, decidimos, como família, mudar-nos para a cidade natal da minha esposa: Dundee, Escócia. Mas o espírito de aventura e o desejo de experienciar o desconhecido não esmoreceu.
Chegando finalmente ao emprego onde atualmente me encontro. O longo título (com tradução livre do inglês) é: farmacêutico prescritor especialista clínico na área de AVCs e com interesse em farmacogenética.
Nos últimos quase 3 anos o hospital de Ninewells em Dundee tem sido a minha casa, onde foi muito bem recebido. Onde mais uma vez confiaram plenamente nas minhas capacidades como farmacêutico, num cargo completamente novo para mim. Tive a oportunidade de continuar a desenvolver as minhas competências, participar no desenvolvimento do departamento, escrever artigos científicos, apresentar o meu trabalho no congresso da Royal Pharmaceutical Society e vencer prémios nacionais. Tudo isto não podia minimamente imaginar no meu primeiro dia como farmacêutico nas Minas de Panasqueira há tantos anos.

Que diferenças se destacam mais entre trabalhar em Portugal e no Reino Unido?
Se tivesse de escolher a principal diferença, além da remuneração, seria o facto de o farmacêutico ser mais respeitado. Mais respeitado tanto pelo publico, pelos restantes membros da equipa farmacêutica, e por médicos e outros profissionais de saúde. O nosso conhecimento farmacêutico é valorizado por todos os profissionais de saúde e sentimo-nos parte de uma equipa. Existem mais opções de carreira e de desenvolvimento profissional em que a progressão é uma realidade.

Quais foram as situações mais estranhas que presenciaste em contexto laboral?
A única coisa que me vem à ideia está relacionada com o facto de nenhuma receita ou venda de medicamentos pode decorrer numa farmácia sem a presença física de um farmacêutico. Quando trabalhava numa farmácia inglesa de supermercado, na ASDA, os escritórios e as casas de banho para funcionários não se situavam na zona da farmácia e quando tinha de sair para usar a casa de banho, no regresso tinha quase sempre um técnico do outro lado do balcão com uma caixa de paracetamol para um um cliente que aguardava que eu voltasse. Assim que eu entrava na farmácia a caixa de paracetamol mudava de mãos e o cliente saía finalmente da farmácia com os seus medicamentos. Algo muito diferente da realidade portuguesa.

A partir das tuas experiências de trabalho noutros países, que medidas tomavas para melhorar o Sistema de Saúde português?
Estando fora há quase 20 anos não creio que esteja a par do funcionamento actual do sistema de saúde. Uma medida seria valorizar todas as profissões e trabalhar como uma equipa aproveitando o conhecimento que todos os profissionais de saúde têm para oferecer e deixar de lado arrogância e o receio cada uma das diferentes profissões perderem espaço ou protagonismo. O exemplo é o de Inglaterra e Escócia onde cada vez é mais comum ter farmacêuticos em consultórios médicos aliviando a pressão nos médicos e libertando-os para se poderem dedicar a casos mais complexos que necessitem da sua atenção. Os Farmacêuticos tratam de consultas de rotina, prescrevem independentemente ou em modo colaborativo e os médicos focam-se em casos críticos e em emergências.

O que é que funcionava bem em Portugal e não funciona no teu trabalho actual?
Pessoalmente acredito que o sistema de comparticipação em Portugal funciona melhor que o sistema gratuito escocês onde todos os medicamentos são gratuitos para o utente. Pessoalmente acredito que este sistema está muito mais sujeito a abuso e desperdício.

O regresso a Portugal está teus planos? Em que circunstâncias?
Depois de já ter tentado voltar a Portugal sem sucesso os meus planos são de regressar apenas na reforma ou pré-reforma com a estabilidade financeira alcançada.

Quais são os planos para a reforma?
Com a minha esposa escocesa, a minha filha nascida em Inglaterra e eu com períodos de emprego e descontos para a segurança social e esquemas privados em 5 países diferentes pensar na reforma pode ser um pouco complicado e algo distante. No entanto, o plano é conseguir a reforma do NHS na Escócia e voltar a Portugal dentro de cerca de 15 anos, comprar uma casa de campo ou perto do mar e gozar a boa vida portuguesa.