Farmacêuticos pelo Mundo: Manuel Campinas
Depois de cumprido o sonho de viver na Escócia, Manuel Campinas, de 40 anos, fez investigação sobre plantas medicinais na Sibéria e mais tarde seguiu para a China no âmbito de um projecto de Doutoramento financiado pelo Conselho de Investigação Económica e Social do Reino Unido (ESRC). Actualmente, reside em Torres Vedras e trabalha como responsável pela prospecção e compras de uma empresa farmacêutica.

Como foi parar à Escócia rural? E quais foram as principais dificuldades de adaptação?
Passei a infância a sonhar com a Escócia, que finalmente visitei aos 16 anos, o bichinho entretanto permaneceu de um dia viver lá. No dia seguinte a entregar a tese de licenciatura tive uma entrevista para trabalhar para a Boots (a maior cadeia de farmácias do Reino Unido) num hotel em Lisboa. Havia outros 30 candidatos que queriam ficar o mais próximo possível de Londres, enquanto eu sonhava com a Escócia rural. Foram boas notícias para os recrutadores, dado que é muito difícil atrair farmacêuticos para a região. Em termos de dificuldades de adaptação, diria que a beleza e o sentimento de comunidade de onde me encontrava veio com um preço, os Invernos custavam a passar, com um estado de hibernação difundido pela terra, já remota, em que todos se isolavam ao fim do dia.
Como era o seu dia-a-dia no trabalho?
O dia-a-dia no trabalho foi difícil de início, as duas farmácias em Campbeltown cobriam uma área enorme, incluindo ilhas, a próxima farmácia ficava a 60kms. Com uma população envelhecida, e muitos utentes a virem de bem longe para recolher os seus medicamentos, o volume de medicamentos era imenso, a juntar às dificuldades logísticas da região. Ao mesmo tempo havia uma grande proximidade com os utentes e um espírito de vida partilhada e entreajuda que tornava o dia-a-dia especial. As horas livres eram passadas a praticar música
escocesa no violino, nos pubs com os amigos e a explorar a região. No Verão fazia bodyboarding nas praias em redor.
Quais foram as situações mais difíceis que presenciou em contexto laboral?
O mais difícil foi mesmo trabalhar para uma estrutura tão grande e impessoal, com pouca valorização individual, e com rotatividade elevada de colaboradores e de chefias.

Como foi a mudança para o projecto académico?
Quando dei conta de que a Universidade de Edimburgo tinha um mestrado em Antropologia Médica, fiquei interessado em voltar aos estudos. Já visitava Edimburgo regularmente e entretanto consegui uma transferência interna para lá, dois anos e meio depois de ter começado o trabalho em Campbeltown. Fiz o mestrado em part-time e muito cedo fiquei convencido de que não iria continuar na Boots o resto da minha carreira, e que queria prosseguir para doutoramento. O trabalho de investigação do mestrado foi na área da medicina popular russa, e sobre o desenvolvimento pós-Soviético da indústria de extractos de plantas medicinais, que me levou à região montanhosa de Altai na Sibéria para trabalho de campo. Em 2013, quando acabei o mestrado com distinção, já o interesse das entidades financiadoras para projetos de investigação na Rússia era muito diminuto. Dada essa dificuldade, decidi alterar o foco da pesquisa para a China. No entanto, dois anos mais tarde, ainda continuava a trabalhar para a Boots, sem conseguir financiamento para o meu projecto. Por isso, em
2015, deixei o trabalho de farmácia comunitária e mudei-me para a China para trabalhar com o departamento de Antropologia de uma universidade em Sichuan, com quem tinha desenvolvido uma parceria. Passado um ano, estava num café em Chengdu a ter uma entrevista remota com o Instituto de Higiene e Medicina Tropical de Londres, que finalmente me atribuiu a bolsa de doutoramento.

De que forma a pesquisa na China mudou a sua perspectiva em relação à abordagem convencional dos farmacêuticos?
A investigação na China abordou o desenvolvimento da indústria de plantas medicinais numa zona onde vive a minoria étnica Qiang (Ch’iang). Dividi o projecto entre duas aldeias e duas cidades, acompanhando todo o trajecto de duas plantas medicinais, desde à colheita e cultivação nas montanhas, até ao processamento nas fábricas. Comparei também os cuidados de saúde nas aldeias desta minoria étnica com o que se praticava nas clínicas auto-intituladas de “medicina Qiang”.
A minha perspectiva quanto à abordagem convencional dos farmacêuticos alterou-se no sentido em que fiquei muito mais alerta para todos elementos relativos às vivências individuais e de comunidade, assim como elementos socio-culturais e políticos que definem e impactam a nossa saúde. Um entendimento melhor da situação e contexto de vida dos utentes pode trazer grandes vantagens à relação farmacêutico-utente, assim como resultados no progresso da terapêutica e saúde em geral.
Quer partilhar algumas histórias da viagem e do projecto de investigação?
O maior desafio nesta experiência foi conseguir dominar a língua chinesa a tempo de iniciar o trabalho de campo. Em Antropologia, é considerado essencial o domínio da língua local para que qualquer trabalho académico seja levado a sério. Felizmente, a vida nas montanhas proporcionou uma aprendizagem bem acelerada. A hospitalidade que recebi das famílias com quem vivi, dos habitantes locais, xamã, e médicos, foi o que me trouxe mais alegria. A parte menos positiva foi o controlo policial a que estive sujeito, por ser um estrangeiro a fazer entrevistas numa zona de minorias étnicas. O facto de não lidar com um tópico politicamente sensível foi irrelevante, e tive de
reportar diariamente todos os meus movimentos à polícia.
A partir das experiências de trabalho noutros países, que medidas tomava para melhorar o Sistema de Saúde português?
A primeira medida seria uma melhor centralização da informação dos utentes. Faz-me muita confusão ver utentes a saltitar entre médicos, à procura de terceira e quarta opinião, e a terem de repetir o historial médico em cada consulta. Com a informação mais centralizada, a partilha de dados entre médicos seria também facilitada, para que se necessário dúvidas possam ser esclarecidas entre vários, antes de chegar uma decisão final e mais robusta ao utente.
A segunda medida seria uma dinâmica diferente entre médicos e farmacêuticos, agindo como uma verdadeira equipa em prol dos utentes. No Reino Unido, todas as receitas têm o número do prescritor. Era muito comum eu pegar no telefone e tirar alguma dúvida, ou alertar para algum possível erro. Na grande maioria dos casos não havia questões de egos ou hierarquias porque sabíamos, tanto farmacêutico como médico, que partilhamos o objectivo de prestar o melhor serviço possível ao utente.
A terceira medida seria ter um sistema de comparticipação diferente tal como no sistema escocês em que os medicamentos são gratuitos. O controlo do desperdício e abuso pode ser feito a nível do sistema, em que os médicos e farmacêuticos têm noção das quantidades necessárias para a terapia prescrita, e podem alertar em caso de desvio. Nada justifica alguém ter de contar tostões ao balcão da farmácia para medicamentos que necessita para a vida.
Por fim, entristeceu-me ver o SNS em tamanhas dificuldades e o panorama da saúde em Portugal completamente virado para o sistema de seguros. Tenho a esperança que venha mais investimento e melhor estruturação para que o país tenha um SNS que funcione para todos, mas de momento a situação aparenta-se muito complicada.
Do que é que sentiu mais saudades enquanto trabalhava fora?
Terei de avançar o velho cliché do tempo, comida e família. À medida que os anos foram passando senti-o cada vez mais.
Em que circunstâncias aconteceu o regresso a Portugal? Está a corresponder às expectativas?
Saí da China em 2019, antes de começar o COVID, passei o último ano do doutoramento a escrever a tese em Edimburgo, e com a situação da pandemia entrei em modo remoto e não necessitei de voltar a Londres. Quando a bolsa terminou vim para a antiga casa dos meus avós na Beira Baixa, com a minha mulher, onde defendi a tese remotamente, sem correcções. Ainda tive duas publicações, uma delas um capítulo num livro de uma editora académica muito prestigiada globalmente. Também concorri para um projecto de pós-doutoramento em Oslo, mas a consciência da precariedade do mundo académico, com a dependência de bolsas de curta duração, juntamente com o desejo de constituir família, fez-me decidir abandonar esse caminho. Felizmente, tive um convite muito aliciante para um projecto de que tenho
grande orgulho em fazer parte. Trata-se de uma pequena empresa farmacêutica fundada e gerida por amigos da faculdade, em que participo activamente no seu crescimento como Responsável de Compras. O meu foco principal é em medicamentos de difícil acesso, e o meu trabalho envolve alguma viagem internacional e o uso ocasional da língua chinesa. Tive também a felicidade de usufruir de um incentivo fiscal e monetário ao abrigo do Programa Regressar. Estou muito feliz em Portugal, e acredito ter tomado a decisão certa na altura certa.
Como vê a evolução da profissão farmacêutica?
Vejo uma profissão que terá inevitavelmente de tomar mais responsabilidades clínicas a nível de farmácia comunitária, e interconectar-se cada vez mais a nível da indústria. Competência não falta.
Quais são os seus projectos a médio prazo?
A nível profissional, espero poder levar o projecto em que me encontro cada vez mais longe. Fora do trabalho, a música continua a fazer parte da minha vida, e ambiciono desenvolver um estúdio caseiro para pequenos projectos musicais.