Farmacêuticos pelo mundo: Nuno Silva
Nuno Silva, 41 anos, foi um dos melhores alunos da Universidade de Lisboa, mas trocou a carreira académica pela investigação de ponta. Começou a trabalhar em ambiente empresarial na Hovione e depois seguiu para Basileia, Suíça, onde viveu durante nove anos, tornando-se num dos Diretores do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Farmacêutica Novartis.

Como foi parar a Basileia? E quais foram as principais dificuldades de adaptação?
A oportunidade de mudar para Basileia surgiu em 2010, quando um contacto na sede da Novartis me propôs concorrer a uma posição para trabalhar no desenvolvimento de novos medicamentos, numa função que encaixava na experiência de trabalho que tinha adquirido em Portugal. Acabei por conseguir o lugar e mudei-me em novembro desse ano. O primeiro choque foi o frio (saí de Lisboa com temperaturas amenas e aterrei na cidade com -5ºC e neve) e as dificuldades seguintes foram a procura de uma casa e o elevado custo de vida na Suíça. Ao mesmo tempo fui muitíssimo bem recebido e desde cedo comecei a perceber o quão bem funcionava a organização suíça.
A barreira linguística foi outra grande dificuldade. Neste cantão suíço, o alemão é o idioma oficial (com o qual nunca tinha tido contacto) e na cidade de Basileia fala-se um dialeto bastante característico e difícil de perceber. Isto, obviamente tornava uma simples ida ao supermercado num enorme desafio nos primeiros tempos.
A outra barreira foi a criação de uma network de apoio para começar o processo de integração. A comunidade de portugueses que trabalhavam na minha empresa foi fundamental e muitos deles passaram a ser a minha família na cidade. A rede de colegas de várias nacionalidades, todos na mesma situação, foi também uma grande ajuda para perceber o funcionamento da cidade e para resolver os problemas do dia-a-dia. Basileia é uma cidade muito internacional, sede de duas das maiores multinacionais farmacêuticas, e o número de expatriados na cidade ronda os 30% entre os seus 150 mil habitantes.
Como era o seu dia-a-dia no trabalho?
Trabalhar numa multinacional é uma experiência muito enriquecedora e desafiante. No departamento onde iniciei funções existiam 18 nacionalidades, com todas as diferenças culturais e de relacionamento. Em termos de trabalho, sou líder das equipas de Desenvolvimento Galénico e Analítico de novos medicamentos (desde a descoberta da molécula, até à produção das embalagens que são posteriormente vendidas nas farmácias). O dia-a-dia passava pela discussão e preparação de diversos estudos para os projetos em que estive envolvido, até se desenvolver um medicamento estável e com um processo de fabrico robusto. Em algumas ocasiões envolvia a ida ao laboratório ou às fábricas de produção para a execução dos referidos estudos. Tive (e tenho!) a felicidade de trabalhar com excelentes cientistas com os mais variados backgrounds, algo que me enriquece pessoal e profissionalmente todos os dias.
E nas horas livres?
Fora do trabalho, para além da rotina diária, apreciava muito as atividades ao ar livre, como passeios de bicicleta pela cidade, ou desfrutar de uma cerveja nas margens do Reno ao pôr-do-sol e em boa companhia. Os fins-de-semana eram passados muitas vezes em almoços e jantares com amigos, ou em viagens para conhecer as regiões próximas de Basileia, incluindo algumas cidades alemãs e francesas. No Inverno, sempre que possível, as idas à neve eram obrigatórias.
Quais foram as situações mais difíceis que presenciou em contexto laboral?
Em empresas grandes, por vezes, somos confrontados com mudanças de política que levam a alterações significativas, sejam prioridades, reestruturações de departamentos, ou mesmo despedimentos em massa. Infelizmente, embora não as tenha sentido na pele, presenciei diversas mudanças na empresa, algumas delas com eliminação de um número significativo de postos de trabalho, algo que no dia-a-dia causa tensão e incerteza. No que concerne a projetos, tive algumas situações de projetos que eram de elevada prioridade e que de um dia para o outro eram terminados. Embora fosse frustrante, obviamente que entendia as decisões da empresa e o enquadramento na estratégia global. Não deixavam, contudo, de ser situações que requeriam uma capacidade de adaptação extra e de alguma tensão.
Começou a trabalhar em investigação enquanto aluno da Faculdade de Farmácia. Como surgiu a oportunidade?
A minha história na Faculdade de Farmácia começou por acaso. Como muitos colegas, Medicina era a primeira escolha. Mas, as notas não ajudaram, e, para não ficar um ano parado, escolhi Ciências Farmacêuticas como opção. Logo após o primeiro ano comecei a apreciar o curso e as possibilidades que oferecia e acabei por ficar. As opções de participar em investigação foram uma delas. Era algo que me via a fazer. A oportunidade surgiu no 2º ano do curso. Na altura, Química Orgânica era uma das cadeiras mais relevantes, e da qual gostava. Decidi perguntar a um dos professores se era possível aos alunos participarem em atividades do género, e foi-me aberta a porta para dar uma ajuda a uma doutoranda com uma parte do trabalho. Por lá fiquei até ao fim do curso, e dessa experiência, para além de ter desenvolvido uma série de skills para aplicar em investigação, vi o meu nome inscrito num artigo científico. Foi muito gratificante.

Chegou a ponderar a Carreira Académica?
Efetivamente, devido à minha participação nas atividades de investigação, e devido ao facto de ter acabado o curso com uma boa classificação, tive o convite para integrar um projeto de doutoramento em Química Orgânica, que seria a porta de entrada para a carreira académica. Contudo, na altura, não achei que aquela área específica fosse a mais interessante e adequada para mim.
Como aconteceu a passagem para a Indústria Farmacêutica?
Em paralelo com as discussões acerca de um possível doutoramento, quis experimentar algo fora do mundo académico. Especificamente, tentar a indústria farmacêutica, ora em produção, ora em ensaios clínicos, ou, ainda melhor: em investigação e desenvolvimento. A passagem para a indústria deu-se por estar no sítio certo à hora certa. Soube que a Hovione estava à procura de farmacêuticos para a criação de um grupo de Desenvolvimento Galénico, e, dado ser exatamente o que procurava, decidi abraçar o desafio. A Hovione foi a minha grande escola, onde comecei pelas bases e evoluí enquanto profissional da área. Ainda ponderei fazer um doutoramento em ambiente empresarial, mas, dados os desafios e as oportunidades de aprendizagem que tive ao longo dos meus 17 anos de experiência, acabei por deixar de lado essa opção. No entanto, imagino que se tivesse enveredado por esse caminho, teria por certo aberto ainda mais portas, e se calhar estaria a fazer outras coisas nesta indústria.
Fazer parte das atividades de investigação e desenvolvimento de novos fármacos dá-me um grande sentido de propósito: poder criar medicamentos, com qualidade, para melhorar a vida de milhões de pessoas é extremamente gratificante.
Quais são os atuais desafios na pesquisa e desenvolvimento de novos fármacos?
Creio que vivemos tempos muito interessantes. No início do Século XX, Paul Ehrlich falava no conceito da “bala mágica”, um medicamento que pudesse, de forma precisa, atacar uma certa doença. Nunca como antes estivemos tão próximos de corresponder a esta ideia: através da Terapia Genética (como por exemplo as tecnologias de RNA mensageiro), dos Anticorpos Monoclonais mais bem direcionados para alvos melhor conhecidos ou da Terapia Celular em que conseguimos “limpar” as células de determinadas doenças.
Temos inúmeras doenças para as quais não há ainda um tratamento eficaz e o que tentamos todos os dias é procurar novas abordagens para combater essas doenças, sejam elas doenças de massas, como a hipercolesterolemia, sejam cancros raros, ou doenças genéticas de difícil abordagem. O que tenho acompanhado é o aparecimento de novas tecnologias para as quais ainda se está a desbravar caminho, mas tecnologias essas que têm um imenso potencial. Vemos as Big Pharma a investirem milhões em pequenas startups com tecnologias dessa natureza exatamente pelo valor que elas têm para um futuro próximo. Cabe-nos, agora, dar-lhes o melhor uso e crescermos cientificamente no sentido de as conhecermos e lhes darmos mais valor.
Aconselhava o curso de Ciências Farmacêuticas a um candidato ao Ensino Superior?
Estamos numa altura muito interessante em termos de conhecimento e de novas oportunidades. E estas não se prendem apenas com Investigação e Desenvolvimento: existem os ensaios clínicos, a área regulamentar (ainda há pouco tempo a US FDA veio “pedir ajuda” para criar regulamentações mais adequadas para as novas tecnologias), ou o marketing digital para dar a conhecer, de forma mais adequada, as novas opções terapêuticas. Isto são apenas alguns exemplos do potencial que o farmacêutico terá num futuro próximo, pelo que, se me perguntassem se este curso seria interessante, efetivamente que diria que sim!
De que forma deveria melhorar o curso para se adaptar aos desafios da investigação e desenvolvimento de novos fármacos?
O curso de Ciências Farmacêuticas que frequentei no início dos anos 2000 era muito pouco vocacionado para a indústria. No que toca a investigação não se acompanhava o que de mais interessante se desenvolvia na área, internamente ou em centros de renome ou na própria indústria. Enquanto aluno, achei que a preparação era mais virada para Farmácia de Oficina, e pouco para o sector industrial e de investigação. Pelo que percebi, com a aplicação do processo de Bolonha, as aulas práticas laboratoriais, que eram um ponto forte, passaram a ter um peso menor no currículo.
Creio que os cursos ganhavam muito se as faculdades apostassem na modernização dos conteúdos e os apresentassem aos alunos de forma mais atrativa para que estes conhecessem melhor o que de bom se faz na área de investigação. A própria forma de lecionar deveria ser revista nesse sentido. Ao mesmo tempo, penso que os centros de investigação das faculdades se deviam especializar em temas relevantes e de ponta, para que a atividade de investigação não seja apenas um exercício académico, mas cada vez mais focado em problemas concretos, quer das necessidades mais atuais da indústria farmacêutica, quer da procura de parcerias com organismos internacionais de renome. Embora não tenha um conhecimento aprofundado dos mecanismos de financiamento das atividades de investigação universitária, imagino que existe um mundo de oportunidades de financiamento extra se as parcerias e os temas forem de relevo, de forma a permitir às faculdades mais autonomia em relação ao tradicional financiamento da FCT.
Como vê a evolução da profissão farmacêutica?
Eu posso falar especificamente da minha área de conhecimento. Vemos hoje em dia uma aceleração no desenvolvimento de novas tecnologias na área da saúde, sejam de novas plataformas medicamentosas, bem como de plataformas digitais a suportar tratamentos e interações entre profissionais de saúde e pacientes. Creio que as novas gerações de farmacêuticos se devem preparar para uma maior e mais acelerada inovação, e que eles próprios sejam parte dessa inovação. Espero, contudo, que as instituições de ensino em Portugal sejam capazes de acolher os novos tempos e saibam preparar os futuros farmacêuticos para as reais necessidades do mercado, num mundo cada vez mais dinâmico.
Durante a pandemia de CoVid19 foram desenvolvidas vacinas inovadoras em poucos meses e iniciada uma campanha de vacinação inédita em todo mundo, o que permitiu salvar a vida de milhões de pessoas, em especial as que pertencem aos grupos de risco. No entanto, todo este processo acabou, de forma paradoxal, por gerar desconfiança em algumas franjas da população que apelidaram o processo concertado de resposta à pandemia de “fraudemia”. De que forma esta corrente anti vacinas está a influenciar as atividades da Indústria Farmacêutica?
Acho que, no mundo atual, a indústria tem apostado em inovação e em explorar novas terapias e tecnologias. A experiência da Covid-19, e do desenvolvimento “rápido” das vacinas (um conceito erradamente passado, uma vez que as tecnologias usadas não eram novas) foi um bom “abre-olhos” para o que devem ser as estratégias de comunicação quer das empresas quer dos líderes de opinião. Houve de facto imensa desinformação sobre as tecnologias bem como sobre os mecanismos por detrás do desenvolvimento e aprovação de novos medicamentos, o que criou muitos extremismos e desconfiança em certos sectores da população mundial. Vê-se, contudo uma aposta muito grande nas tecnologias de informação por parte das empresas como forma de fazer passar a mensagem e os grupos globais e nacionais de comunicação das empresas estão muito mais alertas e preparados para resolver questões importantes que possam danificar a imagem de uma empresa em particular ou da indústria no seu todo.
A quantidade de vídeos, de fazedores de opinião e de publicações a destratar a medicina convencional e a disseminar ideias anti-ciência é cada vez maior. Como é que se pode lidar com esta epidemia de desinformação?
Sinto que cabe, por um lado aos líderes de opinião, mas também aos governantes e agentes reguladores/fiscalizadores (por exemplo o Infarmed) terem um papel mais ativo quer no uso de linguagem acessível para as populações, quer nos canais onde a informação é veiculada (seja a comunicação social, sejam as redes sociais) para combater a desinformação. Acho que a população em geral, desde que acedendo a informação simples e factual, dada por que tem poder de modelar a opinião pública, teria um comportamento diferente. Em Portugal temos exemplos muito bons do que é o valor da medicina e das terapêuticas: por exemplo, a nossa taxa de vacinação é uma das altas a nível mundial, com resultados evidentes na redução ou erradicação de doenças. Este tipo de informação devia ser mais usado para combater movimentos anti-vacinas, com pouca expressão por cá, mas muito populares noutros países, cujas consequências já se notam, como surtos de sarampo nos países da Europa central devido a uma reduzida cobertura vacinal.
Sinto, contudo, que os esforços comunicacionais devem ser bem organizados e geridos pelas várias entidades que integram os sistemas de saúde com uma estratégia clara de Saúde Pública nacional… Se calhar, a meu ver, um caminho ainda longo de ser desbravado e explorado.
A partir das experiências de trabalho noutros países, que medidas tomava para melhorar o Sistema de Saúde português?
Este é um tema sensível e extremamente politizado em Portugal. Uma das coisas que retive dos meus anos a trabalhar fora do país foi a importância fundamental do sector privado no acesso aos cuidados de saúde. Acho que em Portugal se devia apostar mais na inclusão deste sector nos cuidados primários, ao mesmo tempo que se dava a liberdade aos cidadãos de escolher o melhor serviço. Apesar de achar que temos um bom sistema de saúde, o Serviço Nacional de Saúde é bastante frágil, com muitas lacunas e com uma gestão por vezes questionável, e que necessita de um modelo de gestão mais adequado às necessidades da população. Creio que uma melhor gestão, menos politizada, mais independente, faria com que o sistema fosse mais eficiente e chegasse a mais pessoas.
Uma outra área importante seria a de incentivar a implementação de ensaios clínicos em maior escala no nosso país, quer como fonte de acesso a novas terapêuticas e novas tecnologias, quer como fonte de rendimentos, que nesta área podem ser bastante significativos. Ao contrário de outros países na Europa, como os países de Leste, que claramente apostaram em tornar-se centros de excelência nesta área, Portugal deixou-se ficar para trás, algo que poderia e deveria ser alterado.
De que sentiu mais saudades enquanto trabalhava fora?
Essencialmente de três coisas: bom peixe, bom tempo e o mar! Viver no centro da Europa faz com que se esteja muito longe do mar, e, obviamente, do bom peixe a que estamos habituados em Portugal. Quanto ao clima, apesar de ter aprendido a desfrutar do Inverno Suíço, era curiosamente no Verão que sentia mais saudades do clima português. Na Suíça os Verões são incertos, muito cinzentos e com tempestades frequentes. De certa forma sentia falta de todo o sol que podemos aproveitar meses a fio em Portugal.
Em que circunstâncias aconteceu o regresso a Portugal? Está a corresponder às expectativas?
O regresso a Portugal deveu-se a motivos familiares. Depois de 9 anos fora do país, a expectativa era de regressar e de me readaptar rapidamente à vida em Lisboa. Contudo, a Covid-19 pregou-me uma partida, pois, poucos meses depois do regresso, deram-se os longos meses de confinamento que perturbaram muito a reintegração. Neste momento, essa questão está normalizada. A nível profissional continuo a trabalhar nas mesmas funções na Novartis, apenas que remotamente, desde a chegada a Portugal.
Quais são os seus projetos a médio prazo?
A nível profissional, o meu objetivo passa por continuar a minha carreira ligada ao desenvolvimento de novos medicamentos, aumentar as responsabilidades e pôr em prática os conhecimentos adquiridos ao longo de mais de 17 anos nesta área. Espero ter a possibilidade de fazer parte de equipas que lidam com as tecnologias mais recentes, seja na área da Terapia Genética ou Celular. Espero ainda fazer parte da inovação em projetos cada vez mais complexos e “fora da caixa” como estamos a assistir cada vez mais nesta indústria, e continuar diariamente a pôr em prática o meu propósito de criar algo que seja capaz de mudar a vida de milhões de pessoas mundialmente.