Tem cancro? Vá ao dentista.
Mesmo quando este capítulo estiver encerrado e o doente quiser prosseguir com os tratamentos dentários pendentes, os fármacos deixarão “pegadas” que podem permanecer durante décadas, condicionando a sua vida e a sua saúde.

Pode ser a última das preocupações, pode ser que nunca ninguém o tenha dito, ou pode até ser que a informação tenha caído no buraco que se abriu no chão após o embate da notícia. Fica agora aqui escrito, para memória coletiva: após um diagnóstico de cancro, o doente deve ser encaminhado paramedicina dentária.
Porque aquele procedimento que está a adiar (por medo, economia ou simples procrastinação) deve ser feito antes de iniciar o tratamento. Durante a quimioterapia, radioterapia, terapêutica biológica ou uma combinação destas, o mais provável é que precise de tratamentos dentários e não os possa fazer sem correr (mais) riscos. Porque os tratamentos oncológicos têm, não raras vezes, efeitos nefastos na cavidade oral que precisam ser detectados tão precocemente quanto possível.
Falo de Osteonecrose dos Maxilares associada a Medicamentos (medicamentos, plural, não só bifosfonatos, nem tão pouco anti-reabsortivos). E porque até o que lhe possa parecer de menor importância como aftas, mucosite, xerostomia… Precisa de ser acompanhado de perto porque impacta de forma dramática a qualidade de vida, porque interfere no outcome do tratamento, porque pode, no limite, impedi-lo.
E mesmo quando este capítulo estiver encerrado e o doente quiser prosseguir com os tratamentos dentários pendentes, os fármacos deixarão “pegadas” que podem permanecer durante décadas, condicionando a sua vida e a sua saúde. Mas não falo apenas dos doentes com possibilidade de cura. Dizer que o cancro é cada vez mais uma doença crónica já virou lugar-comum e mesmo que, para alguns doentes, não haja perspetiva de vida sem doença, viver doente também é viver.
É preciso comer, e desfrutar da refeição. É preciso rir com vontade, sem mãos à frente dos lábios. É preciso falar, cantar, beijar… Fazer tudo o que alguém vivo faz com a boca porque até ao lavar dos cestos é vindima. Ou como diria Ana Cláudia Quintana, a morte é um dia que vale a pena viver. E todos os dias que a antecedem também. Se “ir ao dentista fica para depois” não faz sentido, nem filosófica nem clinicamente falando, “não vale pena” ainda fará menos.
Se pensar nisto como uma questão digestiva, deixa de encaminhar? E como uma questão esquelética? Dividir a saúde em sistemas e aparelhos serve apenas a nomina anatómica e muitas vezes nem isso, que o diga o “sistema estomatognático”. O primeiro préstimo de qualquer profissional de saúde é servir. Conhecimento e técnica não têm valor per se. E separar a saúde oral de saúde sistémica é uma abstracção que não serve o individuo nem a sociedade.
Tem cancro? Vá ao dentista. Pela sua saúde.