Smartwatches e a Nova Era da Deteção de Fibrilhação Auricular: Entre a Promessa e a Responsabilidade Clínica
Artigo escrito por Hugo Vizinha (PharmD, Health Management)

A medicina cardiovascular está a atravessar uma transformação silenciosa, mas profunda. Durante décadas, a deteção de fibrilhação auricular (FA) — a arritmia mais prevalente do mundo e um dos principais fatores de risco para AVC — esteve confinada ao espaço clínico tradicional: consultórios equipados com eletrocardiogramas, serviços hospitalares, ou monitorizações prolongadas como Holter ou ECG. Hoje, porém, esse paradigma mudou. E não foi devido a um novo dispositivo médico hospitalar, mas por um dispositivo médico que milhões de pessoas já têm no pulso.
Uma meta-análise recentemente publicada avaliou 26 estudos e mais de 17 mil pacientes, demonstrando que os smartwatches atuais atingem níveis de precisão impressionantes na deteção de FA. A sensibilidade global é de 95%, a especificidade de 97%, e a área sob a curva (AUC) — um dos indicadores mais robustos de desempenho diagnóstico — chega aos 0,97, números normalmente associados a dispositivos médicos formais.
Cada vez mais os sensores PPG (fotopletismografia) igualam a performance de um ECG de uma derivação, sendo disruptivo, não apenas clinicamente, mas industrialmente. A distinção entre “dispositivo de consumo comum” e “dispositivo médico” torna-se cada vez mais ténue. Plataformas de IA incorporadas em smartwatches, criam um ciclo de melhoria que nenhum dispositivo médico tradicional consegue igualar.
Esta vantagem tecnológica coloca pressão sobre os reguladores, sistemas de saúde e até os fabricantes, exigindo novos modelos de validação, certificação e vigilância pós-comercialização, de modo a contrariar aprovações regulatórias lentas e ciclos de inovação longos.
Uma revolução na saúde que vem do consumidor e não do consultório médico
Ao contrário de muitas inovações tecnológicas que chegam aos cuidados de saúde de forma estruturada e planeada, a deteção de FA por smartwatches é um fenómeno “bottom-up”. A tecnologia não nasce da necessidade clínica, mas sim na indústria de wearables e da procura dos utilizadores pela saúde e bem-estar.
Os dados agora publicados não deixam margem para dúvidas que o Apple Watch mantém um desempenho robusto (94% sensibilidade, 97% especificidade). O dispositivo da Samsung atinge níveis ainda mais altos de performance (97% / 96%). O Withings (89% / 95%) acompanha de perto estes dois smartwatches, com resultados consistentes em vários cenários.
Mas esta revolução traz desafios profundos para a prática clínica. A meta-análise mostra um desempenho sólido, mas também revela heterogeneidade significativa entre estudos. Em alguns cenários, especialmente quando os dados de PPG têm má qualidade, a taxa de gravações inutilizáveis chega aos 45%. Noutros, o algoritmo do smartwatch opera num contexto de prevalências artificiais, o que pode inflacionar o valor preditivo positivo e levar a uma sensação de segurança enganadora.
Quando digo que o algoritmo do smartwatch opera num contexto de “prevalências artificiais”, refiro-me ao facto de muitos estudos que validam estes dispositivos utilizarem populações onde a fibrilhação auricular é muito mais comum do que na vida real (doentes de pré-cardioversão ou pós-ablação). Nestes cenários, a probabilidade de qualquer pessoa ter FA é tão elevada que o valor preditivo positivo (PPV) sobe automaticamente, fazendo com que quase todos os alertas pareçam verdadeiros. Contudo, quando o mesmo algoritmo é aplicado a uma população geral, onde a prevalência real de FA é muito baixa, o PPV cai drasticamente, aumentando a proporção de falsos positivos.
Assim, os adultos jovens, os maiores utilizadores de wearables, têm uma probabilidade pré-teste muito baixa de fibrilhação auricular, o que aumenta inevitavelmente a taxa de falsos positivos. Já nas populações mais idosas, muitas vezes com menor literacia digital, os alertas podem ser mal interpretados, gerando ansiedade, consultas desnecessárias ou até idas ao serviço de urgência. Em sentido inverso, desvalorizar um alerta legítimo pode significar perder uma oportunidade de diagnóstico precoce, permitindo a progressão silenciosa de uma arritmia que duplica o risco de AVC.
Os smartwatches não substituem diagnóstico medico, mas potencia-o.
Talvez o maior erro seja imaginar que estes dispositivos venham substituir os métodos tradicionais. Não vêm. O papel deles é outro: expandir o perímetro de vigilância, democratizar a deteção precoce e integrar o cidadão comum na arquitetura da prevenção cardiovascular.
Um paciente pode andar meses ou anos sem qualquer episódio registável de FA durante consultas de rotina. Mas um smartwatch está lá sempre: no ginásio, no trabalho, a dormir, no stress do dia a dia. Esta presença contínua oferece algo que nenhum dispositivo clínico consegue replicar: densidade de dados, contexto e longitudinalidade.
A crescente precisão dos smartwatches na deteção de fibrilhação auricular levanta uma questão ética fundamental: até que ponto estamos a transformar indivíduos saudáveis em pacientes crónicos de baixa intensidade? Apesar da elevada precisão destes wearables, existe risco de excesso de encaminhamentos, ansiedade e “medicalização” excessiva, especialmente no limiar da anti coagulação. Ao mesmo tempo, há uma oportunidade extraordinária para detetar FA subclínica antes que se manifeste com um AVC.
Estamos a entrar numa era em que o desafio já não é a tecnologia em si, mas a nossa capacidade de integrar esta inovação na prática clínica e garantir a sua aceitação pelos profissionais de saúde. Torna-se essencial desenvolver frameworks de decisão para a aquisição e utilização destes dispositivos, bem como criar protocolos clínicos claros, sustentados por guidelines de peritos, que ofereçam confiança e um verdadeiro enquadramento operacional à tecnologia.
A tecnologia avança mais rápido do que os protocolos clínicos, criando um ecossistema em que a precisão do algoritmo pode superar a maturidade da nossa capacidade de interpretação clínica humana. No entanto, a integração de dados passivos provenientes de wearables representa uma das maiores oportunidades da epidemiologia moderna: mapear o comportamento real da FA fora do ambiente clínico. Estudos recentes da Universidade de Stanford, Apple Heart Study e trabalhos europeus sobre deteção de arritmias demonstram que os episódios de FA são muitas vezes intermitentes, silenciosos e dependentes de fatores contextuais como sono, stress e atividade física.
A próxima década poderá redefinir profundamente as diretrizes de cardiologia, incorporando análises temporais, cargas cumulativas de FA e biomarcadores digitais que hoje apenas começamos a compreender. Se soubermos escutar a tecnologia com sabedoria, ela deixará de ser um fim em si e transformar-se-á numa ferramenta útil na prática clínica. Os maiores constrangimentos da inovação não residem, muitas vezes, na tecnologia, mas sim nas dimensões filosófica e operacional do ser humano. No fim, não é a inovação que define o futuro da medicina, mas como escolhemos usá-la nos cuidados de saúde.
Referências:
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