O Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos esteve à conversa com a Salus Magazine sobre os problemas que a Saúde e os Farmacêuticos das diferentes áreas enfrentam hoje. Leia a entrevista exclusiva.
Os farmacêuticos do SNS voltaram a paralisar e a manifestar-se recentemente. Tendo em conta que os farmacêuticos não são uma classe que, tradicionalmente, seja conhecida por fazer greves, como é que vê esta situação?
Os farmacêuticos têm sido, ao longo das últimas décadas, uma classe muito pouco reativa do ponto de vista dos nossos direitos e da exigência de condições para que possamos adequadamente cumprir a nossa função. Por isso, vejo com algum otimismo esta mudança geracional de reação à falta de condições e às vezes até à falta de cuidado e de reconhecimento para com a profissão. Mas é pena que estas reações tenham na base um conjunto de condições que se têm vindo a degradar.
É verdade que os farmacêuticos nunca tinham feito greve. Até ao ano passado, os farmacêuticos nunca tinham apresentado escusas de responsabilidade – e estamos a falar de escusas dentro do Serviço Nacional de Saúde.
Há duas razões para isto ter acontecido agora. Primeiro, a degradação de condições – que não é uma situação nova, mas que tem vindo a agudizar-se -, e a dificuldade de os nossos colegas verem sinais de que as coisas podem melhorar. Por outro lado, há uma nova postura dos colegas, nomeadamente os colegas mais novos, relativamente à não aceitação e a reagir, com responsabilidade, mas de forma visível à falta de condições.
Todos os profissionais do SNS têm vindo a sentir uma degradação de condições para a conseguirem cumprir com aquilo que é a missão de qualquer profissional, que é prestar cuidados de qualidade e em tempo aos doentes. E os farmacêuticos do SNS têm sentido isso de forma aguda, ainda por cima, quando está a acontecer uma revolução na terapêutica em que os farmacêuticos são os grandes protagonistas relativamente a garantir os melhores cuidados e o acesso às melhores terapêuticas aos doentes. Quando não lhes são dadas condições – quer de recursos humanos, quer materiais – e ao mesmo tempo se exige ainda mais, eu compreendo que é frustrante para os farmacêuticos.
Outro aspeto que é igualmente frustrante é a estagnação das carreiras. Nós temos hoje diretores de serviço há mais de uma década ou duas que estão na base da carreira. Temos colegas que não são promovidos há 20 anos. Tudo isto cria uma situação de desconforto, de falta de condições e de reconhecimento.
Mesmo com a criação da carreira farmacêutica?
A criação da carreira farmacêutica foi, por princípio, uma boa decisão que era há muito esperada pelos colegas do SNS. Mas na prática não atinge o objetivo e isso é frustrante. Há uma parte positiva que foi a criação da Residência Farmacêutica e que está a funcionar adequadamente, ou seja, o internato dentro do Serviço Nacional de Saúde para atingir o título de especialista nas três áreas do SNS, nomeadamente a farmácia hospitalar, análises clínicas e genética humana. Mas na implementação da carreira, há um conjunto de defeitos na própria lei que faz com que, por exemplo, um hospital não possa contratar um farmacêutico porque diz que, desde o dia de 1 de janeiro de 2023, apenas pode contratar farmacêuticos com o título de especialista pelo SNS. Ora, os primeiros vão sair daqui a 4 anos, quando saírem os primeiros especialistas, resultado da residência e, portanto, isto é uma quadratura do círculo.
A única solução é alterar a lei, o que não é difícil. Desde que eu iniciei o mandato e na primeira reunião que tive com o Ministério da Saúde, logo nas primeiras semanas, apresentamos uma proposta de alteração legislativa para resolver o assunto. E foi bem acolhida, mas, entretanto, mudou o Ministro. Voltámos à carga, voltou a ser bem acolhido. Mas, a verdade, é que ainda não temos, na prática essa alteração legislativa.
Mas fora do SNS tem havido avanços significativos na carreira farmacêutica.
Sim, temos feito um esforço para diferenciar colegas na farmácia comunitária associados à prestação de novos serviços e isso tem corrido relativamente bem. Estamos no início de um processo que é um processo que tem de ser compreendido como um processo a longo prazo de desenvolvimento da carreira na farmácia comunitária com a prestação de novos serviços. Eu aqui sublinhava como serviço diferenciado o primeiro de todos e cujo modelo deve ser replicado, que é o da vacinação por farmacêuticos comunitários.
Para prestarem este serviço, os farmacêuticos devem ter uma diferenciação para garantir que estão atualizados, que cumprem com todas as regras de segurança. Isto não quer dizer que um farmacêutico que não faz esta formação complementar é incompetente para vacinar. É antes um sinal de que um farmacêutico que tenha esta diferenciação tem a competência máxima possível de acordo com o estado da arte, para fazer uma vacinação segura.
É assim que estes farmacêuticos devem ser vistos e não como outras classes profissionais tentam subverter, dizendo que só com esta formação é que um farmacêutico passa a saber administrar uma vacina. Isto é uma falácia. O que que nos orgulha muito é que a formação específica diferencia o farmacêutico e, portanto, as farmácias sem estes farmacêuticos diferenciados não podem prestar este serviço.
Este é um aspeto importante que nós queremos replicar agora no contexto dos novos serviços que estão em desenvolvimento e que resultam das medidas do Orçamento de Estado para este ano.
Está a falar da dispensa de medicamentos hospitalares pelas farmácias comunitárias?
Da dispensa de medicamentos hospitalares em proximidade pelas farmácias comunitárias e da renovação da terapêutica crónica pelos farmacêuticos comunitários. Aqui há dois aspetos importantes, nomeadamente o facto de os farmacêuticos serem profissionais competentes para garantir este serviço com qualidade e, por outro lado, a questão de haver maior comodidade e maior proximidade do serviço aos nossos doentes. Isto é muito importante.
Pela primeira vez – e era uma bandeira que eu tinha no início da candidatura – conseguimos garantir que os farmacêuticos têm acesso à informação clínica relevante para prestarem adequadamente o serviço. Isso foi alcançado nesta matéria, mas também nas vacinas.
Hoje, por exemplo, nas vacinas, os farmacêuticos têm acesso ao histórico vacinal dos doentes, coisa que não acontecia até aqui. Ao mesmo tempo, por exemplo, na dispensa e na renovação da prescrição os farmacêuticos têm acesso ao histórico de prescrições e dispensas dos doentes, o que permite fazer uma interpretação adequada e ter uma intervenção com muito maior qualidade e segurança. Tudo isto parecia impossível e hoje faz parte da construção destes serviços.
Outra coisa que parecia impossível é o diálogo formal eletrónico entre o farmacêutico e o médico que acompanha o doente. Isto é fundamental porque abre agora mais facilmente o caminho para que, nos outros serviços, estas condições já sejam condições de base.
“Estamos a trabalhar num cartão de identificação universal, que permita a quem entra numa farmácia saber quem são os farmacêuticos”
Ou seja, é bom para os farmacêuticos, mas especialmente para os utentes?
Interessa ao Serviço Nacional de Saúde e aos doentes, porque retira pressão aos cuidados primários e às urgências hospitalares.
Eu dou sempre este exemplo: não estamos a inventar a roda, no Reino Unido já existe com os NHS Services. Aliás, nós fomos de propósito a Inglaterra para reunir com a Royal Pharmaceutical Society, com o NHS e com o órgão que faz a negociação destes serviços para ver como é que as coisas funcionavam. Em Portugal temos um problema, que os técnicos classificam como falsas urgências. Eu tenho sempre muito cuidado em chamar falsas urgências, porque acho que é uma ofensa para o doente, porque nenhum doente passa seis horas numa urgência se sentir que é uma falsa urgência, portanto, é tecnicamente uma falsa urgência, mas para o doente é urgente. Se soubesse que passava não ia, mas sem ter outras alternativas acaba por ir à urgência hospitalar.
Quem teve uma infeção urinária sabe que é uma urgência e que o mal-estar é tão grande, a dor é tão grande, que a tendência é tentar ter acesso a cuidados através das urgências hospitalares. Mas se nós tivermos este serviço em proximidade, nas farmácias comunitárias, através de um protocolo com qualidade e segurança desenvolvido pela Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos, vamos permitir que o farmacêutico, através de um teste, identifique se é uma infeção urinária. Em 90% dos casos será mais comum que se intervenha com um antibiótico protocolado. Isto resolverá o problema de 90% dos doentes com infeção urinária. Os restantes 10% têm de ser encaminhados para, provavelmente, urgências para a consulta de acordo com o protocolo, mas isto já retira a pressão.
E os farmacêuticos já fazem os testes na farmácia comunitária, a única diferença é que o utente tem depois de ir ao médico para obter a prescrição do medicamento…
E o que é importante é que depois haja follow-up que também deve ser protocolado do farmacêutico para com o doente. Também é importante haver um registo que permita ao médico daquele doente saber que aquela intervenção existiu.
Considera que a implementação de protocolos desta natureza será fácil?
Se se fosse fácil, não estávamos cá. Para já é um objetivo.
Claro que, ao mesmo tempo, esta evolução deve ser acompanhada por uma diferenciação dos colegas que prestam estes serviços. Uma diferenciação formal de maneira que um colega que tenha acesso a estas competências reconhecidas para ter um valor adicional para o seu próprio empregador. Se eu for proprietário de uma farmácia quero que a minha farmácia preste serviços e para prestar este serviço tenho de procurar um colega que esteja em condições formais de os prestar.
É por isso que a ordem está neste momento a desenvolver competências. A primeira vai ser competência em oncologia. A diferenciação oncológica é quase uma obrigação nos dias de hoje. Portanto, o que nós pretendemos é que, no futuro, os doentes oncológicos em ambulatório possam ser acompanhados, não por qualquer farmacêutico na farmácia, mas por farmacêuticos com esta competência.
Os doentes oncológicos estão cada vez mais em ambulatório. Felizmente, vivem cada vez mais com terapêuticas muito complexas que deixaram de ser, em muitos casos, aquelas que exigem as estadias no hospital. São terapêuticas, orais ou subcutâneas que podem ser feitas em ambulatório e há situações em que precisa dos serviços dos farmacêuticos comunitários, para além dos serviços dos farmacêuticos hospitalares.
Se conseguirmos criar um corredor seguro entre farmácia comunitária e farmácia hospitalar, que permita a abordar estes doentes com o conhecimento adequado à situação de um doente oncológico que faz um conjunto de terapêuticas que têm um conjunto de especificidades próprias, ganhamos imenso do ponto de vista da qualidade de vida dos doentes, da saúde dos próprios doentes e também do sistema, que passa a ter uma capacidade de tratar melhor com menos, com menos intercorrências, com menos idas ao hospital.
Para isso é preciso que haja a tal comunicação formal entre níveis de cuidados, em particular entre o farmacêutico hospitalar e o farmacêutico comunitário.
Mas a comunicação entre colegas farmacêuticos comunitários e farmacêuticos hospitalares não é a melhor, pois não?
Isso é verdade e é uma situação que me preocupa. Há duas culturas diferentes que não estão minimamente habituadas a dialogar. E é para isso que nós existimos, é para prestar os melhores cuidados ao doente. Se nós queremos verdadeiramente pôr o doente no centro, essa cultura tem de mudar e é preciso que haja um diálogo permanente entre os colegas que prestam cuidados aos doentes.
Os colegas vão ter de se conhecer melhor e, em vez de terem desconfiança e, às vezes, preconceitos de parte a parte, passam a ter de colaborar e a perceber que a multidisciplinaridade dentro da própria profissão é o caminho.
E de que forma é que a Ordem dos Farmacêuticos poderá ajudar nessa ligação entre os vários colegas das várias áreas?
É uma obrigação da Ordem estimular este diálogo. Não podem ser os doentes a sentir esta descontinuidade por falta de diálogo. O diálogo e a colaboração entre colegas é uma é uma obrigação deontológica e a ordem tem obrigação de fazer cumprir o código deontológico.
Nós fizemos um exercício que está a resultar numa norma para a dispensa de medicamentos em proximidade, onde foram essenciais a colaboração entre o Colégio de Farmácia Hospitalar e o Colégio de Farmácia Comunitária. Temos de fazer mais exercícios destes a bem dos doentes. E qualquer farmacêutico que não tem este princípio de pôr o doente à frente é um mau profissional.
Os farmacêuticos devem ter, então, um papel importante na gestão do Sistema Nacional de Saúde?
Não envolver os farmacêuticos na discussão do SNS é um sinal de má gestão. Os farmacêuticos são responsáveis por 20% do orçamento do SNS. O orçamento do medicamento é a segunda maior despesa do SNS, logo a seguir ao peso dos recursos humanos.
E essa despesa passa pelos farmacêuticos. A gestão adequada dessa despesa e qualquer tomada de decisão com vista a melhores resultados tem de envolver os farmacêuticos. Não chamar os farmacêuticos para essa gestão é de uma irresponsabilidade que demonstra ignorância ou má-fé.
Eu não acredito que os responsáveis do SNS sejam ignorantes ou tenham má-fé, por isso, torna-se natural o envolvimento dos farmacêuticos. Mas também é preciso que os farmacêuticos estejam disponíveis e preparados para responderem esses desafios.
E estão preparados e disponíveis?
Temos de estar. Caso contrário, passamos nós a ser os responsáveis pelo problema e depois não nos podemos queixar. A nova geração tem de preparar mais, não só tecnicamente, mas também no que diz respeito a políticas de saúde e gestão em saúde.
As farmácias podem, efetivamente, ser uma porta de entrada no SNS?
Têm de ser, até porque o sistema não se pode dar-se ao luxo de desperdiçar estas portas.
Dou o exemplo da diabetes. As farmácias deviam ser aqui uma porta de entrada do diabético no SNS, mas não há condições para que sejam.
Se a glicemia do utente estiver sistematicamente aumentada não é o farmacêutico que faz o diagnóstico, não é o farmacêutico que diz: a partir de hoje, o senhor é diabético. Mas identifica uma condição que é compatível com a diabetes. O problema é que, se eu quiser usar a Farmácia onde trabalho como porta para entrada no sistema não é possível. Aliás, o doente sai pela porta por onde entrou com um papelinho com um conjunto de valores e fará deles o que quiser, porque não há forma de farmacêutico fazer aquele doente entrar no sistema. Isto é um desperdício porque o doente ganharia com isso, porque era tratado mais precocemente, tinha menos complicações da diabetes e o sistema ganharia com isso, porque é caríssimo tratar um doente diabético complicado.
Outro exemplo é a saúde mental, que é um tema que me preocupa e onde eu acho que devemos apostar nos próximos tempos. Portugal tem problema de saúde mental não diagnosticada, que leva a que toda a gente fique muito admirada, porque é que uma pessoa se suicidou e ninguém deu por nada…
Os farmacêuticos têm a uma posição privilegiada como agentes de saúde pública, porque têm um contacto privilegiado com os doentes. Todos os dias entram nas farmácias mais de meio milhão de pessoas. Estas pessoas têm interação com os farmacêuticos. Muitos deles conversam e dão sinais que, se o farmacêutico estiver preparado para os identificar, permite precocemente sinalizar e encaminhar aquelas pessoas que assim deixam de estar sozinhas.
Nós temos 11 mil farmacêuticos comunitários, todos os dias expostos a estas situações e que podem atuar.
“Não envolver os farmacêuticos na discussão do SNS é um sinal de má gestão”
Outro tema que preocupa muito as pessoas é a rutura de medicamentos. Como é que se explica esta falta constante de medicamentos nas farmácias?
É importante que as pessoas percebam que as ruturas não são todas iguais, não têm todas a mesma gravidade e também não têm as mesmas razões. Este é um assunto que nos preocupa porque, como farmacêuticos, está no nosso ADN garantir o acesso dos nossos doentes aos medicamentos. E é importante identificar as razões para tentar resolver o problema. Como disse, as razões não são todas iguais: há situações que têm que ver com falta de matérias-primas ou de substâncias ativas.
Dou um exemplo. Quando tivemos o problema da falta de medicamentos pediátricos, não havia nem os antibióticos adequados na solução oral, nem anti-inflamatórios. Mas havia outros antibióticos e eu acho que teria sido mais útil, como outros países fizeram dizer ao farmacêutico: quando não tem este, dá este. Em vez de dizer aos pais desesperados – porque só quem não foi pai é que não sabe o stress que é ter um bebé com uma infeção respiratória, com febre, prostrado, etc. – não tenho o antibiótico, tem de voltar ao médico, deviam ter sido acionados mecanismos seguros com rastreabilidade, que resolvessem o problema das pessoas o mais rapidamente possível e com a maior comodidade possível.
E os farmacêuticos já têm competência para isso…
Sim, desde que seja justificado.
A reserva estratégica de medicamentos pode ser, como já defendeu, uma solução para as ruturas? E de que forma é que pode funcionar a gestão desta reserva estratégica?
Há uma ideia errada sobre a reserva estratégica de medicamentos. Há quem pense que uma reserva estratégica é um grande armazém, onde eu tenho lá parados medicamentos e como eu não quero que haja uma catástrofe, fico à espera de que passem o prazo de validade para depois deitar para o lixo.
Mas o que é preciso é que haja uma estratégia moderna de envolvimento dos fabricantes e dos distribuidores em Portugal para termos uma reserva estratégica viva em circulação e que garanta que, quando é necessário acionar essa reserva estratégica, há em circulação quantidades em excesso que permitem lá ir buscar quando é precisa, em vez de estar fechada no armazém, porque assim nunca passa a validade.
É preciso construir isto envolvendo todos e o mais rapidamente possível, porque nós achamos sempre que não vamos ter um sismo, que não vamos ter uma guerra. Mas, se calhar, Israel também achava que não ia ter aquilo que está a viver…
Portanto, eu acho que é fundamental que olhemos para isto, porque são estas as situações que, como bastonário achei que era uma obrigação pormos isto a funcionar. E são os farmacêuticos que conhecem as dimensões do problema.
É preciso haver alterações no que diz respeito à formação dos farmacêuticos?
Uma coisa que eu tenho estimulado muito e que não faz parte da cultura dos farmacêuticos é o desenvolvimento académico continuado. Nós precisamos de mais gente com doutoramento e de gente com doutoramentos nas farmácias comunitárias a prestar serviços, gente com doutoramentos nas farmácias hospitalares a prestar serviço. Não queremos formar académicos, queremos profissionais com graus académicos que também ajudem a Academia.
Mas a especialização dos farmacêuticos não se tem traduzido, necessariamente, numa maior valorização dos profissionais. Tanto no que diz respeito às tarefas desempenhadas e, especialmente em termos remuneratórios. Como é que se pode inverter esta tendência?
Há aqui um aspeto que eu acho que é importante: os colegas não se devem sujeitar a tudo o que lhes é proposto. Se não tenho as condições adequadas para exercer adequadamente, para prestar os melhores cuidados, se aquilo que nos é proposto é deontologicamente reprovável a obrigação do profissional é não aceitar. Porque ao aceitar está a pôr em risco o resultado da sua própria intervenção. A Ordem tem aqui uma obrigação – deontológica e legal – de apoiar os colegas que se sentem violentados do ponto de vista deontológico.
Ao mesmo tempo, é preciso perceber a importância da valorização profissional e a diferenciação. Os farmacêuticos têm de se diferenciar uns dos outros para que não sejam todos iguais. Como há pleno emprego, têm de ser mais exigentes com os empregadores ou com as entidades que lhes propõem emprego. Se isso acontecer, melhora as condições de um modo geral, não é?
E depois, há outro aspeto importante, que é aproveitar estes novos serviços e esta diferenciação que está a ser construída para se valorizarem do ponto de vista profissional. E valorizar também na perspetiva salarial.
Eu sou contra o voluntarismo. Não, por princípio, claro. Alguém que é voluntário pode fazer um trabalho de graça. Um profissional, não deve é ter voluntarismos e, portanto, esta ideia do vamos fazer mais este serviço de graça, é má. Se um serviço gera valor adicional, o que nós temos de fazer é medir esse valor, e negociá-lo entre o prestador e o pagador.
Isso foi conseguido há uns anos com a troca de seringas, que era também um serviço voluntário e depois, como qualquer serviço voluntário, as pessoas não dão valor adequado. Por isso, este serviço de troca de seringas praticamente desapareceu. O que se fez depois foi medir – através de uma estrutura académica – o valor em termos de em termos de prevenção de infeções e outras variáveis, quanto é que isso valia. E foi atribuído um valor em euros e esse valor foi repartido entre os prestadores e o próprio pagador.
É esse o princípio que usamos para a comparticipação de medicamentos. Se usamos para a comparticipação de medicamentos, que é uma intervenção em saúde. Devemos usar para todas as intervenções em saúde.
Em todo o caso, há muitos farmacêuticos que não se sentiram valorizados e que acabaram por desistir da profissão. Como é que assiste a esta realidade?
Tenho pensado nisso há muito tempo. Isto é multifatorial e os casos não são todos iguais. As razões de cada caso podem ser muito diferentes. Mas há aqui um elemento que tem que ver com a visibilidade farmacêutica.
Durante décadas, o farmacêutico esqueceu-se de comunicar para fora. O que é um farmacêutico? E para que é que serve? Toda a gente sabe, tem uma ideia do que é o farmacêutico, mas se eu perguntar a alguém na rua, até a profissionais de saúde pela definição de farmacêutico, a definição vem errada, incompleta e muitas vezes ao lado. E isso é culpa nossa também.
A nossa falta de afirmação e de visibilidade durante muitos anos também explica esta situação. Temos de mudar isto rapidamente. Por isso eu digo que a nova geração, quando reage para fora, de forma visível, demonstra que a classe está a mudar no bom sentido, no sentido correto, que é tornar-se visível e afirmativa.
A minha perspetiva, como farmacêutico, é que falta visibilidade e falta a comunicação. É frequente um utente da farmácia comunitária achar que todos os que estão na farmácia são farmacêuticos.
“Todos os dias entram nas farmácias mais de um milhão de pessoas”
E como se muda esta perceção geral de que o farmacêutico só serve para dispensar medicamentos?
Esse é um trabalho que temos de fazer a nível comunitário. Nós estamos a trabalhar num cartão de identificação universal de farmacêutico, que permita a quem entra numa farmácia saber quem são os farmacêuticos.
Esse cartão, para além de identificar que aquele profissional é farmacêutico, permite identificar as especialidades e competências que aquele farmacêutico adquiriu. Isto também ajuda a diferenciação.
Não tenho nada contra os outros profissionais, mas eu sou Bastonário dos Farmacêuticos e, portanto, é fundamental que eu, como doente, quando entro numa farmácia, não tenha que me esforçar por tentar identificar se aquela pessoa é ou não farmacêutica.
Os doentes têm direito de saber quem é que têm à frente deles. E têm direito a conhecer o perfil do farmacêutico que os atende. Este é um ponto importante para a visibilidade e, ao mesmo tempo, para a transparência relativamente ao nosso utilizador final, que é o doente.
Mas também temos de trabalhar para que a classe conheça melhor a própria classe. Nós não somos todos farmacêuticos comunitários e hospitalares: há os da indústria, das análises clínicas, dos assuntos regulamentares, da distribuição – que tem vindo a ser uma área cada vez mais exigente e que nós estamos a trabalhar no sentido de a transformar em especialidade.
Considera, então, que a profissão farmacêutica ainda é uma profissão com futuro?
Os farmacêuticos estão sempre com medo que a profissão desapareça. Mas esquecem-se que esta é uma profissão universal. Não há país nenhum que não tenha esta profissão. É milenar. Por isso, a profissão vai ser o que nós quisermos que seja.
Eu, às vezes, sinto alguma tristeza quando ouço colegas que estão mesmo convencidos que a profissão pode desaparecer. Não vai desaparecer. Somos uma das profissões mais antigas e continuamos com problemas de identidade e com dificuldade de afirmação. Não há razão nenhuma para isto. E nós temos que urgentemente tornar novamente o sentimento de pertença à profissão como uma coisa natural num farmacêutico.
E qual é o papel da Ordem neste processo?
Este papel é obrigatoriamente da OF. É a Ordem que agrega todos os farmacêuticos. Não há outra instituição que represente todos os farmacêuticos. Às vezes há uma tendência para um farmacêutico ou uma organização achar que a Ordem não está a compreender, mas está, porque a Ordem é a Ordem de todos.
Ainda se nota resistência de alguns farmacêuticos em se especializar. Que mensagem gostaria de passar aos colegas sobre este tema?
Nós estamos a mudar o paradigma e a ideia de que uma especialidade dá acesso a determinada função específica. Temos de olhar para as especialidades, não apenas como uma porta que se abriu para poder ter acesso a uma função.
Isto não tira valor às especialidades, antes pelo contrário. Permite que nos preparemos através das especialidades para ter uma diferenciação. Portanto, aquilo que eu acho que todos os colegas devem preparar-se para logo que tenham os requisitos cumpridos relativamente ao acesso à especialidade que façam o exame de especialidade na área e que vejam o acesso à especialidade como obrigação urgente. Acima de tudo, porque é bom para eles. Porque passam a ter reconhecido aquele perfil específico adicional nas diferentes especialidades.
Se eu tiver um farmacêutico com aquele perfil assegurado pela ordem através de uma especialidade, torna-se natural que seja aquela pessoa a assumir um cargo de elevada responsabilidade. Portanto, é fundamental que os colegas vejam as especialidades como uma evolução natural e precoce, logo que tenham a experiência feita normalmente 4 ou 5 anos, através de um determinado trajeto profissional e que façam especialidade.
De que forma pode a Ordem aproximar-se mais dos farmacêuticos, levando-os a procurar esta especialização?
Nas últimas décadas, houve um afastamento dos profissionais relativamente à Ordem dos Farmacêuticos. E não vale a pena taparmos o sol com a peneira, é uma realidade. Temos que trabalhar novamente essa aproximação, não por obrigação.
É claro que eu só posso ser farmacêutico se tiver o título da ordem, se tiver inscrito na ordem, porque se não, não posso sequer legalmente usar o título de farmacêutico. Mas não é por essa via, é por os profissionais sentirem naturalmente que faz sentido fazer parte da Ordem, da sua ordem.
E para isso, o que tem a Ordem de ter? Proximidade e utilidade. Se não for próximo e não for útil, as pessoas não aderem. Precisa de ter também independência. Independência de qualquer estrutura que não seja apenas a nossa obrigação para com os associados, não há qualquer outra estrutura de que a ordem possa depender.
E transparência. Transparência nas decisões, transparência nos processos, homogeneidade e decisões. Nós temos três Secções Regionais e não pode nunca acontecer para a mesma situação, diferentes Secções terem diferentes soluções porque o farmacêutico não pode depender do sítio onde está inscrito ou onde trabalha, ou onde reside para ter uma decisão ou outra
E é fundamental aquilo que eu dizia: a Ordem tem de ser útil. O farmacêutico tem de sentir “eu pago as quotas, mas sei que posso contar com estes serviços e não é só formação e a formação e o apoio jurídico”.
Como é que avalia a relação da Ordem com os farmacêuticos mais jovens e os estudantes de Farmácia?
Essa é uma das prioridades da Ordem. Entre as propostas que apresentamos e concretizamos foi a criação do Conselho da Juventude Farmacêutica. E que tem feito um trabalho notável. São colegas nossos profissionais de diferentes áreas que se representam eles próprios, mesmo aqueles que fazem parte da Associação de jovens farmacêuticos, da Associação de Estudantes de Farmácia, e têm feito um trabalho notável, quer na caracterização da profissão, quer nas áreas, nas novas áreas ou as áreas potenciais de desenvolvimento profissional.
É fundamental que os jovens se aproximem da classe. A transformação da classe está nos jovens. Os mais velhos já fizeram o seu caminho, já foram relativamente jovens e portanto, já não é aos 60 anos que vão fazer uma revolução.
Portanto, esta é a atitude que eu acho que devemos ter e que temos tido dentro da Ordem. É preciso que a Ordem se aproxime da Academia e é preciso que a Ordem se aproxime dos estudantes. Nós temos estado a fazer isso. Temos uma figura, que é o membro estudante: alunos do 4.º e 5.º ano dos Mestrados Integrados em Ciências Farmacêuticas podem ser membros estudantes. Não pagam quotas, mas têm acesso a toda a informação da Ordem. Ou seja, podem envolver-se na Ordem, na vida da Ordem, nas problemáticas da profissão e, ao mesmo tempo, têm também aspetos que lhes são direcionados, incluindo aqueles protocolos que se fazem com empresas.
Aquilo que nós estamos a fazer é estimular também, através de associações de estudantes, que os colegas se aproximem da OF. A Ordem só ganha com isso, eles vão ser nossos colegas e o tempo passa num instante, e quando derem por isso, já são farmacêuticos, de corpo inteiro e se se aproximarem da ordem enquanto estudantes, torna-se natural a serem membros da Ordem e envolverem se na vida da Ordem.
As novas instalações da sede da Ordem podem ter algum papel neste trabalho de aproximação?
A sede é a casa de todos. Não é a casa da Direção Nacional, é a casa de todos e eu quero muito que a sede da ordem seja uma sede viva, em que as pessoas sintam que quando querem convidar alguém ou quando se querem reunir com alguém ou quando querem desenvolver alguma atividade ou algum projeto, que a primeira coisa que pensem é que possa ser na sede da sua Ordem e que isto é importante em termos de utilidade e de proximidade.
A Ordem vai ser a casa de todos os farmacêuticos e não uma coisa estilo museu fechado. Onde é difícil entrar. Não, os farmacêuticos têm que sentir que, também do ponto de vista material, têm um espaço que é deles e onde podem desenvolver. O meu sonho é que alguém que venha a Lisboa de Faro ou de Ponte de Lima, e que precise de reunir com alguém diga “então às 12h00 na sede da Ordem dos Farmacêuticos”.
Está a meio do seu mandato. Que balanço é que faz do trabalho até aqui?
O meu caderno de candidatura está organizado por tópicos e eu tenho a esperança de conseguir fazer um V nos tópicos todos. Não está a correr mal até há algumas coisas que eu achava que eram das mais difíceis e que felizmente estão a acontecer, como é o caso dos serviços e a Residência.
Quanto à carreira, a única coisa que posso dizer é que não teria concordado com aquela lei se estivesse aqui, mas não estava. Mas isso dá-me autoridade moral para identificar os problemas. Ainda bem que não estava, porque assim posso mais abertamente identificar onde é que estão os problemas da lei das carreiras dos farmacêuticos que, como disse, como princípio, é ótimo, mas que devia ter havido cuidado de algumas coisas que pareciam pormenor, mas que são importantes na vida das pessoas.
Não poder contratar, não poder haver reconhecimento do título da ordem, sendo os requisitos exatamente os mesmos, é um princípio do qual eu não quero abdicar e, portanto, estamos a ver se conseguimos alterar. Ou, por exemplo, colegas com contratos diferentes, mas com a mesma carreira, uns deles em que o tempo de serviço, contou e outros foi zerado são situações que são limitações àquela lei, mas foi o que se conseguiu.
Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Agora temos é de resolver esses assuntos e são assuntos que para mim são preocupantes, embora não estivessem no programa eleitoral.
Já sabe se vai apresentar uma recandidatura?
Eu nem sei o que é que vou fazer amanhã…
Mas o regresso à Faculdade é sempre uma garantia…
Eu nunca saí da faculdade, portanto, voltar para a faculdade é qualquer coisa que é uma impossibilidade. Porque eu nunca saí da minha carreira e, aliás, é a minha carreira. E eu tenho de agradecer também à faculdade de farmácia a disponibilidade que me tem proporcionado. Eu continuo a dar aulas, mas apesar de tudo, não estou com o horário a 100%, como é óbvio. Passo mais tempo na Ordem do que na faculdade, isso é assumido. Mas a faculdade dá-me as condições para poder ser bastonário.
Depois há uma decisão que assumo pessoalmente e que foi criar condições para que os órgãos Dirigentes da Ordem pudessem ter remuneração. Por uma questão de princípio, claro. Eu sou professor universitário, tenho a sorte da minha universidade me permitir ser bastonário com o ordenado de Professor universitário. Mas é importante que um bastonário seja bastonário e se ponha à disposição da ordem pelas suas qualidades e não pelo seu estatuto de professor universitário, de proprietário ou por ter capacidade económica para se dar ao luxo de o fazer.
As outras ordens tinham remuneração e aqui nunca se chegou ao fim do processo para garantir remuneração. E esse foi um desígnio meu e que conseguimos com a ajuda dos colegas da Direção Nacional, da Assembleia Geral e também das Assembleias Regionais. A Ordem tem de ser a Ordem de todos e todos podem ser bastonários, se tiverem a predisposição e se a classe farmacêutica os quiser.
A limitação financeira não pode ser razão para alguém que tem todas as qualidades para poder servir adequadamente a classe não poder servir. Hoje, o cargo de bastonário pode ser remunerado. Eu não recebo pela ordem, mas posso-me orgulhar e dizer que o colega que me vier substituir, se não tiver as condições, como eu tenho de poder exercer como bastonário, terá um ordenado digno para poder dedicar-se a um cargo destes.
Portanto, um segundo mandato como bastonário da Ordem dos Farmacêuticos ainda é um tabu para si?
Eu não estou a dizer que não faço um segundo mandato, mas também não estou a dizer que faço. O princípio dos cargos é as pessoas não se perpetuarem. Eu tenho muito cuidado com isso.
Eu estive 12 anos na administração do Infarmed e achei excessivo. Os dois últimos anos, para mim, foram penosos. A preocupação que eu tenho na Ordem é preparar a estrutura para continuar e não achar que a estrutura só continua enquanto a pessoa cá estiver. Não há insubstituíveis e esse é o meu princípio. É também meu princípio trabalhar sempre onde estou como se fosse mesmo até ao último dia, como se fosse para a vida toda. Sabendo que não é saudável que as pessoas se perpetuem, o que é importante é que preparemos sempre a estrutura para o que aí vem. E essa é a minha preocupação.
Outra das preocupações que eu tenho durante este tempo é preparar uma nova geração para assumir aquilo que aí vem e esse é um aspeto importante. Nós temos de entregar aquilo que foi da nossa responsabilidade à geração seguinte. O melhor possível, claro. E garantir que essa geração, que as pessoas dessa geração estão preparadas para assumir. E essa é a minha postura.
A maioria dos colaboradores da OF e das pessoas que fazem parte da estrutura da ordem são mais novos que eu. Isto não é por acaso. É exatamente porque eu acho que é assim que deve ser. Porque se eu sou a gestão de topo de uma organização e se sei que me vou embora daqui a um ano e meio, ou daqui a 4 anos e meio, eu sei que há uma geração a seguir à minha que está preparada.