Cátia Bonito, de 40 anos, foi uma das investigadoras escolhidas no âmbito do Postdoctoral Challenger, da AstraZeneca, com um projeto inovador sobre uma doença rara. Vive atualmente na cidade de Gotemburgo onde desenvolve o seu trabalho numa das unidades desta Multinacional Farmacêutica.
Como foi o seu processo de candidatura ao Postdoc na Suécia?
Doutorei-me no início de janeiro deste ano em Química Computacional e o meu Postdoc veio no seguimento de uma competição internacional lançada pela Astrazeneca, o “Postdoctoral challenge”. Desde maio de 2022 que investigadores de todo o mundo apresentaram as suas propostas e a minha foi uma das seis escolhidas. Um dos principais desafios da competição foi o último estádio em que apresentei a minha ideia a um júri internacional de renome.
Pode falar-nos um pouco sobre o seu tema de investigação?
Trata-se de um projeto sobre uma doença metabólica rara, para a qual ainda não existe tratamento. Por ser rara também nunca houve interesse em estudá-la em larga escala e encontrar soluções. E foi isso que sempre me motivou, encontrar um tratamento inovador. Trabalho no primeiro estádio do desenvolvimento do medicamento (investigação e desenvolvimento) e faço estudos na tentativa de perceber o(s) mecanismo(s) de uma determinada doença e proponho moléculas (ou desenho-as) para que um dia, no futuro, possam servir como potenciais fármacos. O gosto por esta temática remonta ao meu mestrado em Portugal e basicamente este projeto é baseado numa investigação 100% portuguesa, com a qual eu contactei há dez anos.
Como é o seu dia-a-dia no trabalho? E nas horas livres?
Embora tenha um horário flexível, normalmente entro às 8h e saio às 16h. Sou Química Computacional e o meu trabalho é maioritariamente feito em frente ao computador e com bastantes reuniões. Por vezes paro para relaxar um pouco, e participar no “Fika que é uma pausa para comer, beber um café e conviver. O Fika é quase sagrado para os suecos. No meu tempo livre gosto imenso de caminhar e de ouvir música. Há muitos espaços verdes e florestas onde se pode caminhar tranquilamente.
Quais foram as situações mais difíceis que presenciou na Suécia?
Num meio internacional, o que para nós é normal, como por exemplo, a maneira de falar, ou de ser caloroso na forma de receber o outro, e que tanto nos caracteriza, para os nórdicos é estranho. E vice-versa. Temos de aprender a ser politicamente corretos e a não ser intrusivos. Outra situação, quando é para trabalhar ninguém fala. Só se “perde tempo” a falar ao almoço e no Fika. E isso foi algo que não acontecia em Portugal. Por exemplo, se estávamos na farmácia, por vezes falávamos uns com os outros sobre vários assuntos, e aqui não se perde tempo a falar sobre algo que pode ser falado mais tarde no Fika ou no almoço.
A partir das experiências de trabalho noutros países, que medidas tomava para melhorar o Sistema de Saúde português?
Todas as pessoas que se registam na Suécia tem médico de família. Portanto, como primeira medida: não deixar nenhum cidadão sem cuidados primários. Aqui a maior parte dos cuidados de saúde são prestados por enfermeiros, incluindo as crianças que passam primeiro pela consulta de enfermagem. Ou seja, como segunda medida: dar mais responsabilidade aos enfermeiros para que em todas as faixas etárias fossem eles a dar a primeira resposta. Outra medida: ter enfermeiros nas escolas. Aqui as crianças até aos 9/10 anos são seguidas no centro de saúde e a partir dos 10 anos, o acompanhamento quer físico quer psicológico, bem como vacinas, pesagem, etc., é feito por enfermeiros especializados. Caso seja algo grave a criança é encaminhada para o médico. Em relação aos adultos, somos chamados a tempo para fazer rastreios.
Algo curioso, do meu ponto de vista, é que aqui não há urgências a abarrotar. Só se pode lá ir com autorização do 1177, que é o equivalente à linha Saúde 24. Existem locais apropriados (que são urgências mais pequenas, geralmente associadas aos centros de saúde que funcionam de dia e de noite onde há um sistema de drop-in). Portanto, outra medida: dar mais poderes aos centros de saúde, passando por dar mais poder aos enfermeiros, ficando as urgências reservadas a quem realmente precisa, sendo que essa triagem nunca poderia ser feita pelo próprio doente. E por último: criar um sistema online de renovação de medicação que esteja comprovada como sendo crónica, para os utentes não entupirem os centros de saúde.
O regresso a Portugal está nos planos? Em que circunstâncias?
Não, a não ser por questões familiares graves.
Como vê a evolução da profissão farmacêutica em Portugal?
Muito sinceramente não vejo evolução positiva.
Todos os anos, durante os meses de Verão, há muitos alunos finalistas do secundário a preparar a candidatura à universidade. Que descrição faria do curso de Ciências Farmacêuticas e das saídas profissionais para ajudar estes candidatos a decidir?
O curso é bastante completo, ainda hoje aplico as bases que aprendi, mas na minha opinião são apresentadas como saídas profissionais diretas a farmácia comunitária e a hospitalar. Tudo o resto requer especialização em mestrados, sendo que o nosso junta mestrado integrado. Eu, por exemplo, voltei à Faculdade de Farmácia para fazer Mestrado porque o curso base não chegava para a área pela qual enveredei e depois fiz o Doutoramento em Química com especialização em Química Teórica e Modulação Molecular (um nome muito pomposo para dizer Química Computacional).
Quais foram as situações que a desiludiram mais em Farmácia Comunitária?
A primeira foi sem dúvida os horários, a forma como era tratada e por não antever progressão na carreira. Do ponto de vista da entidade patronal era muito bem tratada, mas eles nunca perceberam que o que leva as pessoas a uma determinada Farmácia é na minha opinião o atendimento da equipa que está atrás do balcão. Atender ao público não é fácil, mas o balanço era positivo, entre os mal-humorados e as pessoas simpáticas. Outra questão, que foi a gota de água, foi a o facto de ser obrigada a impingir consumíveis às pessoas que eu sabia que não tinham capacidade para comprar. A farmácia tornou-se cada vez mais num negócio e eu saí da faculdade com a ideia de que nós, farmacêuticos, somos os profissionais do medicamento e que temos um papel relevante na sociedade. Trabalhei 5 anos em farmácia comunitária e a minha realidade começou a não ser essa.
Do que é que tem mais saudades do seu trabalho em Comunitária?
De certas pessoas e da importância que alguns utentes nos davam enquanto profissionais diferenciados.
Quais são os seus projetos a médio prazo?
Em termos profissionais, desenvolver o meu projeto de investigação na AstraZeneca em Gotemburgo, local onde atualmente trabalho. E em termos pessoais dar oportunidade aos meus filhos de um futuro melhor, com mais escolhas e melhor qualidade de vida.