Farmacêuticos pelo Mundo: Filipa Leal
Filipa Leal, 42 anos, começou na gestão de uma farmácia em Portugal, emigrou para a Irlanda, trabalhou na China e Portugal novamente, especializou-se em saúde mental nas ilhas britânicas e deu aulas de Química na Inglaterra, posteriormente ensinando Enfermagem na Alemanha, mantendo seu futuro profissional em aberto.
Filipa Leal no seu bistro “Terra” em Ingolstadt.
O curso de Ciências Farmacêuticas foi a sua primeira escolha no acesso à universidade?
Sim, Ciências Farmacêuticas era a minha primeira opção no acesso à Universidade. Na altura a minha motivação prendia-se com o tomar conta do negócio de família, confesso que não havia nenhuma vocação especial. No ano que entrei na Universidade, durante as férias grandes, trabalhei numa plantação de tabaco, foi uma experiência muito interessante e partilhei as rotinas diárias com um estrato da sociedade que me era desconhecido.
Como foram as suas experiências depois de terminar o curso de Ciências Farmacêuticas?
Quando terminei o curso fui gerir a farmácia da minha mãe nas Minas da Panasqueira, mas um ano e meio depois achei que não havia futuro para mim ali, mas também achava improvável conseguir sentir-me realizada a trabalhar na farmácia de outra pessoa. Assim decidi emigrar para a Irlanda. Fiz uma entrevista por telefone e depois foi tratar da papelada legal para o registo na ordem dos farmacêuticos irlandesa. Coisa fácil, nem sequer um teste de inglês era preciso fazer. Trabalhei em farmácia comunitária durante três anos até começar a sentir uma certa estagnação profissional. A oportunidade para trabalhar em farmácia hospitalar apareceu e apesar de o salário ser inferior, compensava porque fazia part-time uma vez por semana numa farmácia comunitária.
A experiência em Farmácia Hospitalar foi super interessante.
Comecei na área dos antibióticos, a fazer uma revisão das prescrições de modo a aumentar o cumprimento das guidelines, evitar tratamentos demasiado prolongados e promover a passagem da terapêutica intravenosa para oral, quando apropriado. Mais tarde mudei-me para a área de oncologia/hematologia, onde o contacto com a equipa multidisciplinar era constante. Também tive a oportunidade de desenvolver o sistema de Qualidade da Farmácia, escrevendo procedimentos e promovendo a discussão dos nossos procedimentos no dia a dia da Farmácia. Foi uma altura de grande crescimento profissional, aprendi imenso e podia escolher as áreas em que me queria focar.
Até que decidiu sair da Irlanda e mudar-se para o outro lado do mundo. Quais foram as motivações?
A recessão económica chegou à Irlanda e com ela cortes salariais e uma instabilidade laboral que não me agradaram, assim, decidi fazer uma pausa na carreira para dar aulas de inglês em Yuyao, uma pequena cidade chinesa (cerca de meio milhão de habilitantes). Adorei a China e a experiência de professora, mas a mudança das regras na obtenção de vistos acabou por ditar um fim prematuro da experiência. No total fiquei sete meses na China.
No regressou a Portugal encontrou trabalho em que área?
De regresso a Lisboa encontrei trabalho no hospital São Francisco Xavier. A equipa era fantástica e o ambiente de trabalho muito melhor do que na Irlanda, onde havia uma cultura de empurrar trabalho uns para os outros.
Mas em termos de quantidade de trabalho, foi um choque.
Na Irlanda era tudo feito a um ritmo lento, sem pressão. Em Portugal, a equipa era bastante mais pequena mas o serviço muito mais abrangente. Mal tive tempo de aprender como funcionava o sistema informático e já estava responsável pela validação de prescrições em várias enfermarias. Lembro-me de chegar a casa de rastos. Felizmente, a equipa voltou a ficar mais completa com o regresso de algumas colegas de licença de maternidade e ai começou uma época mais relaxada, e também mais interessante, com mais trabalho clínico e até alguns projetos de investigação. Foi aqui que pude apreciar a importância de uma boa liderança.
E por que motivos voltou à emigração?
Por motivos pessoais, mas desta vez fui para Inglaterra. Encontrei trabalho como farmacêutica clínica sénior num centro hospitalar de Saúde Mental. Candidatei-me a imensas posições, algumas bem mais júnior do que esta mas acabei por descobrir que a contratação de pessoal para a área de saúde mental era difícil e portanto uma boa porta de entrada para quem não tinha ainda experiência no Sistema Nacional de Saúde Inglês.
Teve oportunidade de trabalhar na área da Farmácia Clínica. Como foi a experiência?
A farmácia clínica está implementada há imensos anos no Reino Unido e foi na área da Saúde Mental onde notei uma colaboração mais produtiva e gratificante do farmacêutico clínico com a resto da equipa multidisciplinar. Nas reuniões, cada representante dos diferentes grupos profissionais (enfermeiros, psicólogos, farmacêuticos, nutricionistas, fisioterapeutas) tinha a oportunidade de dar a sua opinião sobre o plano terapêutico de cada doente e sobre a coordenação do director de serviço.
Tive a oportunidade de fazer muitas revisões de terapêutica…
Tive a oportunidade de fazer muitas revisões de terapêutica, de encontrar muitos problemas medicamentosos que estavam a afectar o doente (como interacções, durações de terapêutica demasiado longas, efeitos secundários que obrigavam a medicação adicional, entre outros). Dada a cronicidade da maioria das doenças nesta área, também fiz muitos historiais de medicação, em que se descrevia o que o doente tinha tomado, em que datas e qual era a avaliação do estado do doente nesses períodos. Estes historiais ajudavam a perceber se tinha havido um fármaco em especial que tivesse ajudado e, se sim, o que é que tinha acontecido para que a terapêutica tivesse sido interrompida. Como Farmacêutica da enfermaria entrevistava os doentes na admissão (se estivessem em condições) e sempre que havia uma mudança significativa na terapêutica. Os doentes tinham uma voz ativa na escolha dessa terapêutica e o meu papel era dar-lhes informação de modo a que essa escolha fosse o mais informada possível. Em termos de trabalho como Farmacêutica, creio que esta foi a altura de maior realização profissional.
Havia uma constante apreciação da equipa pelo trabalho desenvolvido e o contacto com os doentes era também muito gratificante, em especial na enfermaria dos doentes sénior.
O único problema é que a Psiquiatria é uma área relativamente pequena e ao fim de três anos já sabia de cor todos os fármacos, para todas as indicações, com todas as contraindicações e efeitos secundários previstos. Outro fator que me desencantou com Psiquiatria era a constante readmissão de doentes nas enfermarias de adultos, parecia que não fazíamos qualquer coisa de positivo por estes doentes.
Foi nesta altura que decidiu abandonar a carreira Farmacêutica?
Assim acabei por ingressar numa pós-graduação em Educação, num projecto que se destinava a treinar profissionais de diferentes áreas para serem professores de secundário. Escolhi a área da Química, mas tive que fazer um curso de “refreshment” e assim começou o treino que era sobretudo “on the job”. Foi duro, muito duro. A minha primeira colocação foi numa escola com imensos problemas de disciplina e tinha que lidar com alunos muito complicados, para além de estar a tentar adquirir, ao mesmo tempo, ferramentas e capacidades pedagógicas, que obviamente não tinha. Os meus dias de professora na China, com mais de 30 alunos numa sala, mas em que se fazia silêncio mal eu começasse a falar, não me tinham preparado para o que veio. Em todo o caso, os anos de Farmácia Hospitalar, com todos os seus stresses e pressões, vieram em meu auxilio e completei o treino e a pós-graduação associada. Depois veio a busca do primeiro emprego a tempo inteiro, o que em tempos de referendo Brexit, se revelou mais difícil que o esperado. Por fim encontrei uma escola que se revelou mais problemática do que o previsto e foi mais um ano de grande stress profissional. Não só devido ao comportamento dos alunos, mas também a um sistema altamente burocrático em que os trabalhos de casa tinha de ser corrigidos com frases de apreciação e sugestões de melhoramento para cada aluno, para além de testes no fim de cada capítulo.
Eram semanas de mais de 60 horas de trabalho, com muito pouca apreciação por parte de colegas, alunos e pais.
Mas ao fim de um ano tinha a minha qualificação completa de professora de Química e estava feliz da vida.
Por motivos pessoais, no entanto, larguei o meu contrato permanente na escola e mudei-me para a Alemanha, mais precisamente em Ingolstadt, uma pequena cidade na província da Bavaria.
Reportagem sobre o café “Terra” no Donau Kurier, um jornal de Ingolstadt.
E agora, na Alemanha, o que decidiu fazer?
Ninguém falava inglês e eu ainda não tinha começado a aprender alemão. Era-me claro que a minha entrada no mundo profissional ia ser difícil. Devido à sede da Audi, havia demasiados nativos ingleses para o ensino da língua e o português não era procurado. Por uma série de coincidências, tive a oportunidade de receber o trespasse de um café e, assim acabei a realizar o meu sonho de longa data de ter o meu próprio “bistro”. Mais uma curva a pique de aprendizagem, mas estava a fazer aquilo de que gostava e o contacto com o público trazia-me, na sua maioria, muita satisfação. Entretanto tive o meu filho e descobri que a maternidade não era muito aliciante para trabalhadores por conta própria.
Depois veio o “Corona” e as suas regras a mudarem a cada mês.
Acabei por trespassar o café e mudei-me para Nuremberga em busca de melhores oportunidades profissionais. Melhorei o meu alemão com as aulas e as atividades culturais no meu bairro, mas ser professora de secundaria na Bavaria revelou-se impossível. Eles têm regras muito restritas e mesmo professores formados noutros estados alemães têm dificuldades em receber a acreditação profissional. No entanto, em conversas com amigos, fiquei a saber que o ensino em escolas profissionais era muito menos regulado, e foi assim que comecei a dar aulas a estudantes de Enfermagem. Os temas são muito variados, mas tudo em torno da Anatomia, Fisiologia, Fisiopatologia e Farmacologia.
Este processo exige muitas horas na preparação das aulas, pois tenho de estudar muito dos temas, depois estruturar a aula (e aí o apoio que era suposto haver das aulas dos anos anteriores têm-se relevado algo inútil) e depois preparar todos os materiais em alemão. Ainda estou na fase da sobrevivência.
Filipa Leal com a fita ao pescoço do NHS inglês, no Ribbleton Hospital, na cidade de Preston.
Por que motivo deixou a área farmacêutica?
Apesar de ter gostado do exercício da profissão por períodos largos, a verdade é que ainda nos falta uma verdadeira progressão de carreira (em particular em Portugal).
O que é que a desiludiu mais na profissão?
Creio que a minha maior desilusão não foi tanto com a profissão mas mais com os sistemas de saúde que temos. Quando saí esta desilusão era pequena, mas tem vindo a crescer. O sistema de saúde em todos os países que vivi (com excepção da China, por razões muito específicas) tem uma filosofia de “apagar fogos”. Temos uma educação para a saúde residual, mas um orçamento para medicamentos gigantesco. Os nossos profissionais de saúde, aparte dos nutricionistas, percebem pouco ou nada de Nutrição. Somos educados a ignorar o nosso próprio corpo, até que ele fique doente. A filosofia deste sistema é ditada pela indústria farmacêutica, e no final creio que se faz muito pouco pela saúde geral da população. Então se começarmos a falar de saúde mental, o cenário piora mil vezes. É difícil ser-se um membro participativo e motivado num sistema que está de raiz defeituoso.
Que alterações na prática farmacêutica lhe dariam vontade de recativar a Carteira Profissional?
As mudanças que gostaria de ver na profissão e no sector são de tal maneira de raiz que estamos a falar de uma revolução.
Quais foram as coisas mais arriscadas que fez?
Profissionalmente? De certo a mudança de carreira após os 35 anos. De repente voltas a ser o elemento júnior numa profissão que nunca exercestes. É um processo duro e também arriscado. Vais a entrevistas de emprego e já não tens idade para concorrer a posições júnior mas também não tens experiência profissional para uma posição sénior. Podes acabar numa posição muito desconfortável. Felizmente não me chegou a acontecer, mas o risco tem estado comigo desde que deixei a carreira farmacêutica.
Quais foram as coisas mais complicadas que presenciou no seu trabalho?
É dificil de dizer… o trabalho em Psiquiatria de certo trouxe muitos episódios desconfortáveis no contacto com doentes mas, para mim, trabalhar em equipa com um director de serviço incompetente talvez me tenha trazido muito mais diálogos difíceis e situações complicadas de arranjar compromisso. Felizmente estes casos eram a excepção e não a regra.
Do que é que sente mais saudades do trabalho em farmácia?
Apesar de no trabalho como professora teres a oportunidade de ter uma influência real na vida futura do aluno, creio que sinto saudades das revisões de terapêutica de doentes que acabavam a descontinuar medicação inútil, que lhes estava trazer problemas. Alguns tive oportunidade de encontrar mais tarde e eram sempre muito agradecidos do resultado. Também sinto falta de sentir-me parte de uma equipa, o trabalho de professora tende a ser muito solitário e na minha escola atual nem uma sala de professores existe.
Como são os dias na sua nova atividade?
Actualmente passo muito tempo do meu dia a estudar os temas que tenho que leccionar nas semanas seguintes, pesquisar material pedagógico e finalmente preparar as aulas. De momento só dou cerca de 12 aulas por semana, mas parece um trabalho a tempo inteiro. Uma vez por semana tenho aulas de alemão com um professor reformado, em regime de voluntariado. Só vou á escola duas vezes por semana. O resto da preparação faço em “home office”.
Quais são os planos para os próximos anos?
Creio que nos próximos dois anos quero consolidar as minhas capacidades lectivas em alemão e acumular um bom reportório de material didáctico para os temas que leciono. Depois disso… não sei. Se estiver feliz na posição, fico. Talvez me possa tornar coordenadora de um ano lectivo. Senão há sempre a possibilidade de ser fazer uma formação profissional, “Ausbildung”, e mudar de rumo, “quicá” rumo à Psicologia? Fundar um café de “junk food” (alimentos destinados ao lixo) também acho muito aliciante mas por agora não há “momentum” por estas bandas…