Farmacêuticos pelo Mundo: Inês Salvador

Farmacêuticos pelo Mundo: Inês Salvador

Inês Salvador, de 31 anos, fez o curso no Algarve, trabalhou numa farmácia em Faro e mudou-se para a Irlanda pouco tempo depois de fazer o exame para a primeira edição da Residência Farmacêutica.

Inês Salvador num dos seus passeios de fim-de-semana em grupo.

Como foi a sua mudança para a área da Farmácia Comunitária em Dublin?

Bem, penso que seja melhor começar pela minha experiência em Farmácia Comunitária em Portugal, que foi praticamente inexistente, o meu primeiro e último contacto com a Farmácia Comunitária em Portugal foi no estágio curricular, que durou cerca de 4 meses. Eu nunca me identifiquei com o trabalho exercido pelo farmacêutico em Portugal, na minha opinião é um trabalho muito pouco de farmacêutico, daí nunca ter exercido em Portugal. Quando comecei a exercer em Dublin fui-me apercebendo de que aqui sim somos farmacêuticos, estamos constantemente a pôr em prática aquilo que aprendemos durante o curso, e acima de tudo, somos valorizados, e não há nada mais gratificante que isso. Portanto a mudança acabou por ser bastante positiva, e o facto de nunca ter exercido em Portugal fez com que não tivesse “vícios” e isso talvez possa ter ajudado na minha adaptação à realidade irlandesa.

E quais foram as principais dificuldades?

Relativamente às dificuldades, penso que estiveram mais relacionadas com a adaptação ao país e não tanto com o trabalho em si, porque o trabalho sempre achei bastante desafiante e isso foi algo que sempre gostei. O grande pesadelo de alguém se mudar para a Irlanda é sem dúvida o alojamento, pessoalmente não tinha noção do difícil que era encontrar casa na Irlanda, principalmente em Dublin. Devido às dificuldades que tive em encontrar casa, que são ainda maiores se estivermos à distância, tive que pedir ajuda à empresa, à farmácia com quem assinei contrato, e só assim consegui encontrar um apartamento. Mas conheço casos que não tiveram a sorte que eu tive, muitas vezes as pessoas têm que vir para cá, começar a trabalhar sem casa, e para isso têm que ficar temporariamente em Airbnb ou casas de amigos.

Pode falar-nos um pouco sobre o seu dia-a-dia no trabalho?

Trabalho numa farmácia que está aberta das 9h às 20h, o que faz com que sejamos duas farmacêuticas, porque temos que ter “double cover”, e duas técnicas de farmácia. Aqui geralmente trabalhamos 9h diárias. A realidade é totalmente diferente da de Portugal, nós aqui não estamos ao balcão em contacto com os utentes, quem está nessa posição são os OTC Assistant, quando surge alguma dúvida por parte desses colegas é que somos chamados à frente para intervir, ou quando o utente pede para falar com o farmacêutico. Os farmacêuticos e técnicos estão no chamado “dispensary” a preparar as prescrições. Na Irlanda quando alguém precisa de aviar uma receita vai à farmácia, faz a encomenda da sua prescrição e a partir daí a prescrição começa a ser preparada. A prescrição é introduzida manualmente no sistema, as instruções de toma são escritas nas etiquetas, após impressão das etiquetas a medicação começa a ser preparada, geralmente por um técnico, em modo de dose unitária, apenas é dispensada a quantidade prescrita, a quantidade estritamente necessária. Após esse processo a medicação vai ser validada pelo farmacêutico, onde são avaliadas possíveis interações, possíveis duplicações, erros de dose, entre outros parâmetros. Em caso de erros detetados ou dúvidas por parte do farmacêutico, este pode ter que entrar em contacto com o médico prescritor. Todo este processo em média demora cerca de 30 minutos.

E nas horas livres?

Como aqui trabalhamos cerca de 9h diárias e os dias durante o inverno são extremamente pequenos, durante os dias de trabalho a rotina acaba por ser sempre a mesma, casa trabalho, trabalho casa. No verão, em que os dias são o oposto, bastante longos, já apetece mais ir ao Pub depois de um dia de trabalho, para desanuviar. Nos dias livres aproveito para estar com as pessoas que conheço por aqui, que são praticamente todos farmacêuticos portugueses, a comunidade por aqui parece estar a crescer! A farmácia onde comecei a trabalhar, que é a mesma até hoje tinha como Supervising Pharmacist uma portuguesa, mais tarde outra farmacêutica portuguesa iniciou o treino na minha farmácia, e ainda hoje trabalhamos juntas de vez em quando, sendo que para além de trabalharmos juntas, somos vizinhas, e hoje somos grandes amigas. Na altura em que eu vim para Dublin, uma colega que tirou o curso na mesma altura que eu na Universidade do Algarve também veio, e durante os primeiros meses eramos nós as duas, mais tarde essa minha amiga juntou-se a nós, e aos poucos o grupo vai crescendo. A comunidade portuguesa que eu conheço ainda é muito recente em Dublin, mas está sem dúvida a crescer de forma exponencial, o que nos ajuda a fazer sentir mais em casa. Geralmente os nossos convívios são aos fins de semana, em que promovemos jantares, exploramos a cidade e o país, e tentamos manter um contacto constante.

O grupo de farmacêuticos portugueses em Dublin continua a crescer

Quais são as principais diferenças com a Farmácia Comunitária em Portugal?

As diferenças são muitas, começando pelo tempo de espera para aviar uma receita, que em Portugal a dispensa é feita imediatamente e aqui tem que ser feito um pedido prévio para que a medicação possa ser preparada e dispensada. Os farmacêuticos e técnicos não estão ao balcão no atendimento ao público, dedicam-se exclusivamente à preparação e dispensa de medicamentos.

Quais foram as situações que a desiludiram em Portugal? E do que é que tem mais saudades?

Não posso dizer que me desiludiu, porque o meu país nunca me iludiu relativamente ao mercado de trabalho, infelizmente sempre soube que trabalhar em Portugal iria significar trabalhar de forma precária, salários desadequados, falta de reconhecimento. Ter níveis elevados de formação académica em Portugal é o mesmo que não ter, não há evolução, acima de tudo não há carreira.

Saudades… são mais que muitas! Saudades da família, dos amigos, do clima, da comida, da qualidade de vida. Para uma algarvia como eu a coisa torna-se bastante mais complicada, porque o clima aqui é totalmente o oposto, posso dizer que em 11 meses que cá estou, já devo ter ido umas 10 vezes a Portugal, o meu destino é sempre o mesmo, Faro!

Ponderou trabalhar em Farmácia Hospitalar?

Sim, ponderei claro, nunca me identifiquei com a Farmácia Comunitária em Portugal! Eu tenho um percurso diferente da maioria dos farmacêuticos. A minha primeira formação foi Análises Clínicas e Saúde Pública, portanto sempre estive mais virada para a parte clínica, decidi ir para Ciências Farmacêuticas exatamente para evoluir no ramo das Análises Clínicas, entretanto o rumo mudou. Concorri à primeira edição da Residência Farmacêutica exatamente por isso, para que tivesse oportunidade de trabalhar num ramo que não fosse a farmácia comunitária, entretanto fiquei colocada em Genética Humana no INSA, mas já estava a trabalhar em Dublin, e decidi ficar por cá, e não me arrependo.

Parece haver uma frequência cada vez maior na saída do país dos melhores alunos das universidades e dos melhores profissionais em diversas áreas. A questão económica nem sempre é o motivo mais relevante, muitos colegas mencionam outros aspectos como a falta de profissionalismo nos locais de trabalho, de perspectivas de progressão ou de horários condignos com a vida familiar. Quais foram os seus principais motivos?

Esses foram exatamente os meus motivos, sem dúvida o não reconhecimento e a não progressão na carreira. Não há nada mais desmotivante que trabalhares, dares o teu melhor, mostrares aquilo que vales, e no fim não teres esse reconhecimento a qualquer nível. Eu estou constantemente à procura de projetos desafiantes, e este é sem dúvida um deles.

Acha que estas contingências se irão manter e que Portugal continuará a ser um país de formação de jovens licenciados para o mercado internacional? Ou que é possível melhorar as perspectivas de trabalho para os profissionais mais qualificados?

Acho que sim, eu nunca conheci outra realidade e infelizmente não tenho notado quaisquer evoluções, um profissional ser mais qualificado ou menos qualificado é igual, e isso acaba por fazer com que as pessoas mais ambiciosas arrisquem a sua sorte no mercado internacional. Mercado este que para além de valorizar os mais qualificados, ainda encoraja os profissionais a estarem em constante formação, e isso é extremamente desafiante. Sinceramente não prevejo melhoras num futuro próximo, porque as evoluções que presencio há cerca de 10 anos foram praticamente nulas.

Dublin foi a sua primeira escolha?

Dublin não foi a minha primeira escolha. Desde o meu primeiro curso sempre tive bem vincada a minha vontade de ir para o estrangeiro, muito motivada pelo meu pai, que sempre me fez ver que em Portugal dificilmente iria ser feliz a nível profissional. Por diversos motivos só em 2022 essa mudança aconteceu, e nunca tive um país de eleição, sempre estive aberta a qualquer um, aquele que me oferecesse as melhores condições laborais. Acabo por escolher a Irlanda pois as ofertas que surgiram eram maioritariamente para aqui, muito por ser um país com uma enorme falta de farmacêuticos, pois em toda a Irlanda por ano formam-se em média cerca de 200 farmacêuticos, o que não é suficiente. A maior procura de farmacêuticos faz com que consequentemente as condições oferecidas também sejam melhores.

Como decorreu a mudança para a Irlanda?

Quando decidi sair de Portugal em busca de novas oportunidades comecei por pesquisar no Linkedin vagas para farmacêuticos pela Europa, em que a Irlanda ou Reino Unido acabam por ser os países mais acessíveis, devido à língua. Como profissionais de saúde, é-nos sempre exigido um nível elevado da língua do país em questão, porque estamos em contacto direto com a comunidade, daí que países em que o inglês é a língua oficial sejam os mais acessíveis. Entre o Reino Unido e a Irlanda, a mudança para a Irlanda é um processo muito mais fácil e agilizado, em que não são necessários quaisquer tipos de vistos, contrariamente ao Reino Unido.

Em Agosto de 2022 comecei a pesquisar vagas, e a candidatar-me para vagas. Das muitas respostas que obtive, uma delas foi de um recrutador irlandês que entrou imediatamente em contacto comigo, perguntou-me quais os meus interesses, em que ramo gostaria de trabalhar como farmacêutica, quais as minhas expetativas, e uma das perguntas essenciais foi se já estava registada na ordem dos farmacêuticos irlandesa, PSI (Pharmaceutical Society of Ireland). Na altura já sabia que para trabalhar na Irlanda como farmacêutica tinha que estar registada e que para isso eram necessários uma série de documentos oficiais: diploma do curso, registo criminal, atestado de robustez física e psíquica, certificado de inglês e uns documentos que a PSI exige. Todos os documentos têm que estar autenticados e o certificado de inglês, geralmente, é o processo mais difícil, uma vez que acaba por ser muito exigente, na minha opinião, demasiado exigente. O PSI exige um nível de inglês elevado, certificado este que pode ser o IELTS, TOEFL, CAE ou OET. Em cada um deles é exigida uma determinada classificação, mas toda esta informação pode ser consultado no site do PSI. Assim que o exame de inglês é obtido, o resto do processo é bastante mais fácil, o registo no PSI demora em média cerca de 6 semanas, sendo que, no meu caso, desde a procura de vagas até ao começo na farmácia em Dublin passaram 3 meses. No entanto, um farmacêutico em Portugal que ambicione trabalhar na Irlanda e ainda não esteja registado no PSI, pode vir para cá sem estar registado e começa por trabalhar como técnico, a partir do momento que se regista, passa automaticamente a trabalhar como farmacêutico.

Inês Salvador com as suas colegas da farmácia

Até agora, quais foram as situações mais difíceis que presenciou como farmacêutica na Irlanda? E as mais gratificantes?

As situações mais difíceis sem dúvida são quando acontecem erros de dispensa, dispensar o medicamento errado, ou dose errada, ou não ter detetado previamente uma interação. Este talvez seja a maior desvantagem de trabalhar como farmacêutico comunitário na Irlanda, o facto de saber que podemos estar a fazer mal a alguém, acaba por ser algo stressante, é uma grande responsabilidade. As situações mais gratificantes são a valorização que sentimos, tanto utentes como outros profissionais de saúde sentem uma confiança enorme no farmacêutico, os médicos confiam muito em nós, têm noção que somos os profissionais do medicamento, os utentes acreditam também muito no farmacêutico, o que faz com que acabemos por ser muito solicitados.

O que é que funcionava bem em Portugal e não existe ou não funciona na Irlanda?

A tecnologia! A Irlanda, apesar de ser um país que acolhe algumas das grandes multinacionais da tecnologia, não é um país muito evoluído a nível tecnológico. Receitas eletrónicas: é uma não realidade e muito distante. Todo o sistema é ainda muito arcaico, tudo é feito manual, receitas introduzidas no sistema de forma manual, a validade da receita somos nós que temos que verificar manualmente, entre outras coisas, o que faz com que a probabilidade de ocorrerem erros aqui seja bastante maior. Portanto, Portugal nesse sentido está bastante mais evoluído, o sistema funciona bem melhor, e a Irlanda tem muito que aprender com o nosso país.

O regresso a Portugal está nos planos? Em que circunstâncias?

Regressar sim, mas não será num futuro próximo, não é que não sinta falta, não é que não tenha vontade, mas sei que se voltar não vou ser feliz, não vou ter aquilo que sempre procurei, que é o reconhecimento a nível profissional. Voltaria a Portugal já amanhã se as condições de trabalho melhorassem, se o reconhecimento profissional fosse uma realidade, e se o paradigma das farmácias comunitárias mudasse totalmente, um farmacêutico muito mais virado para a parte clínica e menos para a parte comercial, que é a realidade atual.

A partir das suas experiências, que alterações propunha para melhorar o funcionamento do Sistema de Saúde em Portugal?

Sinceramente, acho que o Sistema de Saúde em Portugal funciona bem, apesar de algumas lacunas é bastante completo, e acredito ser um dos melhores a nível mundial, é algo de que me orgulho, ainda mais depois de saber como funciona o Sistema de Saúde Irlandês. Na Irlanda, o sistema não funciona da melhor maneira, ter saúde custa dinheiro, o que faz com que as pessoas, em vez de irem ao médico, recorram muito ao farmacêutico comunitário, pois está acessível a todos. No entanto, grande parte das vezes não há nada que possamos fazer, pois trata-se de transtornos maiores, algo que tem de ser já tratado por um médico, em que tem de haver prescrição muitas vezes. Já se fala que num futuro próximo, o farmacêutico, aqui na Irlanda, como já acontece noutros países, possa vir a prescrever alguns medicamentos. Isto será um passo gigante, que irá melhorar muito a qualidade do sistema, aliviando alguns serviços de saúde.

Penso que Portugal ainda esteja muito distante desta realidade, primeiro tem que haver a tal mudança de paradigma, virar o farmacêutico mais para a saúde do doente e menos para vendas de produtos, na realidade ser o profissional de saúde que é e sempre foi. Mas uma das primeiras mudanças penso que seria ligar, numa primeira instância, o Serviço Nacional de Saúde às farmácias, as farmácias deveriam ter acesso a alguns dados do utente, que seriam importantes no momento da dispensa.

Aconselhava o curso de Ciências Farmacêuticas aos estudantes do ensino secundário?

Considero o curso de Ciências Farmacêuticas bastante completo, abrange diversas áreas, o que faz com que o farmacêutico tenha um grande leque de opções no mercado de trabalho, desde as Análises Clínicas, que foi o que me fez tirar o curso de Ciências Farmacêuticas, Genética Humana, que considero ser o futuro, daí ter escolhido como 1ª opção na Residência Farmacêutica. Depois as áreas mais conhecidas, como a Farmácia Hospitalar, Farmácia Comunitária, Indústria Farmacêutica e Investigação.

Quais são os seus projectos a médio prazo?

Os meus projetos são sempre os mesmos, a procura constante de novos desafios. A partir do momento que achar que estagnei, e que estou a precisar de mudar de área, assim o farei. Gostaria de experimentar trabalhar nas mais diversas áreas, e tenho sorte pois a nossa profissão assim o permite, dada a diversidade de opções.

Trabalhar na área da Farmácia Clínica está nos seus planos?

É uma área que me interessa bastante, mas talvez ache mais atrativo trabalhar no Reino Unido porque a farmácia hospitalar está mais evoluída do que na Irlanda. No entanto, se a Irlanda seguir os passos do Reino Unido e começar a permitir que os farmacêuticos possam prescrever, estarei bastante interessada em formar-me para tal, sem qualquer hesitação. Mas, por enquanto, em termos salariais, trabalhar em farmácia hospitalar na Irlanda é bastante diferente de trabalhar em farmácia comunitária, em que a comunitária leva uma destacada vantagem.