Nasceu em 1975, em Évora, cresceu em Reguengos de Monsaraz e em 1993 escreveu uma carta para a Faculdade de Farmácia de Lisboa a pedir o currículo do curso. Entrou nesse mesmo ano com o sonho de trabalhar na Indústria Farmacêutica. Passou pela área da produção, garantia de qualidade e logística, até chegar ao cargo de Directora Técnica fabril. Em 2018 começou a fazer leituras de poesia no seu canal de YouTube, “Balcão do Poema”, e publicou o seu primeiro livro de poesia em 2021.

A par do intenso trabalho na Indústria Farmacêutica, mantém uma atividade literária como escritora e leitora de poesia nos seus blogue e canal Youtube “Balcão do Poema”. Como é que concilia estas duas vertentes?
Sou ajudada pelo facto de gostar muito de exercer ambas as vertentes. Sendo que a minha actividade profissional se desenvolve na Indústria, naturalmente que a escrita e a leitura de poesia resultam da gestão que faço na ocupação do tempo pós-laboral e familiar. É um tempo curto e que implica lidar com cansaços e fazer escolhas em relação a outras solicitações, seja ver uma série ou ler um livro para relaxar do dia de trabalho ou envolver-me em actividades de fim-de-semana. É um exercício de que resulta alguma irregularidade e assumido amadorismo na escrita e leitura de poesia mas que em nada influenciam o gosto com que vai sendo feito e o sentido de pertença que tenho em relação a esta coisa das palavras. Faz parte de mim e vou tricotando esta manta infinita, umas vezes de forma mais organizada e metódica, outras vezes permitindo-me descontrair. Procurar grupos de leitura, que me levam a descobrir novos caminhos e a partilhar gostos e pensamentos, ou convidar outras pessoas a participar comigo no canal são fórmulas a que às vezes recorro como incentivo e forma de ultrapassar resistências que se atravessam na actividade solitária.
Alguns colegas dizem a brincar que a única ligação dos Farmacêuticos com as letras têm que ver com a “literatura” inclusa nas embalagens, conhecida por bula ou RCM. Como é que contrariou esta ideia e iniciou o seu percurso literário?
Fazendo o paralelismo, na minha realidade farmacêutica, a ligação com as letras está relacionada com a leitura da extensa legislação, guidelines e procedimentos que regulam a minha actividade profissional, bem como toda a documentação e registos que sustentam o sistema de qualidade robusto necessário ao fabrico do medicamento. O meu percurso literário iniciou antes de ser farmacêutica, por isso, não houve propriamente uma contrariedade face à leitura de textos profissionais, mas sim uma continuidade. Ao optar pelas ciências no ensino secundário, tive o intuito de construir a minha futura profissão nessa área, sabendo que a escrita acompanhar-me-ia como hobbie. Sabia que esse gosto estaria sempre lá e que só dependeria de mim escrever, livre da pressão imposta pela necessidade de me sustentar. Sempre gostei de ler e escrever. O primeiro poeta que fez a diferença na minha relação com a poesia foi-me apresentado pela mão da professora de português. Este poeta foi o Eugénio de Andrade, com a força imagética dos seus versos, enorme sensibilidade, masculinidade e bom gosto. Tendo surgido na idade dos segredos, a adolescência, descobri um estilo de poesia diferente do ensinado na escola e com o qual me identifiquei por me permitir esconder por detrás do poema e, por isso mesmo, transformando-o numa zona de liberdade para a expressão de sentimentos, de quereres e de sonhos. Camuflado num poema, o meu eu deixaria de o ser e transformar-se-ia no querer e no sentido de um eventual leitor, desconhecedor das minhas motivações. Nessa fase da vida, o poema torna-se num amigo confiável com quem desabafar.
Durante muito tempo, a poesia foi um lado meu relativamente escondido, tímido. Foi com o meu filho que consegui tirar a poesia do baú ao partilhar com ele o blogue mais desconhecido da blogosfera (sorriso), o ‘Balcão do Poema’, que me serve de laboratório de escrita, e trazê-la para a normalidade do dia-a-dia. E foi assim que saí da adolescência poética e assumi a importância que a poesia tem na minha vida. O dia em que escrevo um poema que me satisfaz torna-se um dia com razão de ser. No seguimento deste meu exercício livre e descomprometido da poesia, tive a felicidade de conseguir uma editora para a publicação de um livro de poesia intitulado ‘Handbook da Maternidade’. Este livro foi escrito pela necessidade de transformar em poesia o acontecimento mais transformador da minha vida: a maternidade. A sua poesia tem um limite temporal, iniciando no momento em que se dá um forte apelo cerebral para a maternidade e seguindo até ao primeiro aniversário de existência mundana do filho.



da Póvoa de Santa Iria
Sendo natural de uma vila do Alto Alentejo, considera que a interioridade está presente nos seus poemas?
Cresci em Reguengos de Monsaraz no distrito de Évora e foi, efectivamente, vila enquanto tive residência lá. Em 2004, Reguengos foi elevado à categoria de Cidade. No período da minha residência, a interioridade geográfica era muito sentida. Naquela altura, o maior impacto para a juventude pós-25 de Abril (sou colheita de 1975) prendia-se com a falta de escolha e diversidade cultural, nomeadamente, livrarias, cinema, teatro, concertos e as infraestruturas existentes não permitiam uma fácil e económica deslocação aos locais onde ‘as coisas’ aconteciam. Os grandes acontecimentos prendiam-se com as festas da terra, celebra-se o Santo António em Junho, brincar o Carnaval com os seus bailes na ‘Sociedade Artística’ e as festas religiosas. Na altura existiam apenas dois canais de televisão estatais, pois a televisão privada nasceu em 1992 com o canal da SIC, um ano antes da minha saída para a Universidade, e a internet não existia. Actualmente, Reguengos não está tão isolado, existindo mais actividade cultural e recebendo um impulso significativo ao nível do turismo. Foi inaugurada a barragem do Alqueva, que permitiu a criação de diversas praias fluviais, desportos náuticos e desenvolvimento de novas unidades hoteleiras de carácter rural, onde o sossego rodeado de todo o conforto é muito apreciado por quem quer descansar do reboliço das grandes cidades. Este novo turismo e as gerações empreendedoras que por lá ficaram permitiram, também, dar mais visibilidade às actividades características do concelho, nomeadamente, a olaria, a vinicultura, a queijaria, a gastronomia e o cante alentejano. Não é de descurar a importância que o aparecimento da internet teve, permitindo uma abertura para o mundo.
Eu vivi intensamente a época da interioridade que tentava colmatar de diferentes maneiras. Assistia a todas as séries que a televisão disponibilizava (recordo as icónicas portuguesas ‘Zé Gato’, ‘Duarte & Companhia’, ‘Quando o telefone toca’) e telenovelas brasileiras. Ia com muita frequência à biblioteca, às matinés (sim, matinés!) na discoteca local e, no Verão, apanhava o ar fresco da noite com as amigas pela Praça da Liberdade. Comia uma tosta no pub ou ia até ao jardim municipal (mais conhecido como a ‘mata’, pelo extenso arvoredo da altura). Ocasionalmente, o cinema CineMonsaraz publicitava um filme e estava garantida a casa cheia. Se toda esta envolvente entra na minha poesia? Acredito que sim, embora de forma indirecta. Não a delineei como um tema específico em redor do qual escrever poesia – quem sabe no futuro o farei? – mas fazendo parte da minha história de vida influencia-me na forma como tenho percorrido o meu caminho, sempre com muita curiosidade, e uma necessidade de me espantar e de conhecer mais. Tudo isto eu vou transmutando na escrita. Há quem escreva diários, eu substituí por poesia. Costumo descrever a minha poesia como uma desmaterialização da vida e do mundo numa transformação em emoções intensas por palavras sentidas e convido a que se arrisque a sentir esta experiência e descobrir o que lhe fará. (sorriso)
Há algum escritor alentejano que a inspire particularmente e que gostasse de sugerir aos nossos leitores?
Reguengos de Monsaraz tem sido profícuo em poetas e a Câmara Municipal tem acarinhado algumas publicações, outras são os próprios a procurar edição. Tenho na minha estante alguns livros de poetas meus conterrâneos. Faz parte da minha colecção a antiga poesia popular de Francisco Baltazar, conhecido na região como o ‘Ti Chico Passinhas’, que não tendo instrução formal, foi criando uma literatura oral composta por décimas, quadras, fados e canções, entre outras formas, recolhidas em livro. Da geração dos meus pais, destaco dois poetas que me marcaram, pois que com eles contactei e partilhámos uma colectânea de poesia, e dos quais continuo a seguir a sua obra. São eles o Luís Filipe Marcão, de quem deixo referência ao livro ‘Travessia do Tempo Ágil’, e o Manuel Sérgio, com ‘Extractos do Ego’. Traduzem na sua poesia as entranhas do Alentejo e do sentir humano, numa escrita que considero muito bonita e que apetece ler, tendo já feito, aliás, leituras de poemas de ambos no meu canal de poesia.
Quais são os autores da chamada “Literatura Universal” que mais admira?
É difícil responder, porque gosto de muitos e variados no seu estilo, mas deixo algumas referências que muito aprecio e que de alguma forma me marcaram. Na literatura portuguesa, sou fã incondicional do Eça de Queirós com o retrato acutilante que faz da sociedade, os seus enredos que nos agarram à história, o seu detalhe descritivo seja de um salão numa casa ou de uma paisagem, associados a um refinado sentido de humor com que apresenta os seus personagens e diálogos. Tem uma escrita que associo ao saber escrever em bom português, aprende-se muito com a sua leitura e sou incapaz de escolher um livro porque gosto de todos. Outro autor português que muito aprecio é o Vergílio Ferreira, destacando o livro ‘Para sempre’. Foi-me oferecido por uma grande amiga minha e acabou por se tornar, este livro também, um grande amigo meu. Foi o primeiro livro que me impactou como se de uma pessoa se tratasse, um amigo póstumo, e essa impressão vai-se entranhando no correr do texto, como se de uma conversa entre dois amigos íntimos se tratasse, o narrador e o leitor, numa mesa de café a trocar confidências e a partilhar memórias. É um livro impressionante. Menciono um terceiro autor que considero fundamental, o José Cardoso Pires. Um dos seus livros originou um filme bastante conhecido e que tem o mesmo nome, ‘Balada da praia dos cães’, e o ‘De profundis, valsa lenta’ é um relato incrível sobrevivente da sua experiência na doença vascular cerebral.
A nível internacional, deixo cinco nomes. Virginia Woolf com a sua ‘Mrs. Dalloway’ e ‘Orlando’ onde já aborda a questão de género. Dickens e os ‘Cadernos de Pickwick’ num registo de humor britânico. Dostoiéveski que nos leva a uma realidade dura e cruel da sociedade russa, numa escrita directa e sem rodeios que eu aprecio, onde destaco ‘Crime e castigo’. Ainda na literatura russa, referencio Leo Tolstói, trabalhando uma paixão obsessiva e destrutiva em ‘Anna Karenina’ ou o colossal e incontornável ‘Guerra e Paz’. Num estilo diametralmente oposto, do realismo fantástico, com uma imaginação e hiperbolização ilimitadas, encontramos o Gabriel García Márquez. Sendo que um dos seus livros mais conhecidos é ‘Cem anos de solidão’, com o seu infindável rol de Aurelianos e Arcadios, deixo outra referência, ‘Amor nos tempos de cólera’ onde um solitário, que vive um amor platónico, ironicamente ganha a vida a escrever cartas de amor por encomenda. Termino com um livro que não me canso de indicar, ‘A montanha mágica’ do alemão Thomas Mann. Aqui, a noção de tempo é desafiada pela rotina de um sanatório nos Alpes Suíços, onde a morte vai acontecendo quase sem se dar por ela, acompanhada pelo crescer de amizades, reflexões e procura de conhecimento do personagem principal. Adorei este livro.
Entrou no curso de Ciências Farmacêuticas em 1993, a Faculdade de Farmácia de Lisboa ainda funcionava nos antigos edifícios com cobertura de amianto e com uma biblioteca muito pequena no famoso “Castelinho”. Como é que se estudava e se realizavam as apresentações sem as actuais facilidades no acesso aos livros e aos artigos científicos on-line?
Eu entrei na faculdade com a turma FFUL 93/99, que daqui saúdo, e que absorveu de imediato o forte espírito académico e colaborativo que já estava informalmente organizado com muita eficácia pelos nossos colegas antecessores. Os apontamentos detalhados das aulas e exemplos de exames de anos anteriores estavam disponíveis. Eram actualizados pelos voluntários que se dispunham a compilar novos apontamentos com as aulas do nosso ano e a disponibilizá-los para benefício de todos os colegas. A reprografia da Dona Nini era e, penso que ainda o seja, o local chave para que tudo isto corresse bem e a informação de base não nos faltasse. Da Dona Nini, com o seu trato alegre e simpático, e da sua organização impecável, que não falhava, ficou uma recordação carinhosa que vem frequentemente à baila quando nos juntamos e voltamos ao passado. Esta forma de estar na Faculdade, em conjunto com a postura do incrível corpo docente, muito contribuiu para a coesão e espírito de grupo e desenvolvimento de um sentido de pertença e orgulho nesta coisa de ser farmacêutico, que se vai entranhando ao longo do curso. Pelo menos, foi com esse sentir que terminei o meu curso, sendo até hoje uma farmacêutica convicta, consciente do contributo dado pela minha profissão em benefício da saúde e bem-estar das pessoas, independentemente do ramo profissional escolhido, e gostando muito de o ser.
Regressando à sua questão das fontes, claro que os apontamentos das aulas não eram suficientes e, para algumas disciplinas, acabava por ser necessário o investimento em alguns livros. Falo de livros físicos comprados em lojas físicas especializadas, pois que, sim, sou do tempo das coisas tácteis e muito aprecio o escolher, folhear, sublinhar e anotar. Estes livros eram dispendiosos, muitas vezes eram edições estrangeiras, por isso, escolhia-se criteriosamente o que ‘valia a pena’ ter. Tenho de destacar aqui o benefício para os estudantes dado pelas edições da Fundação Calouste Gulbenkian, bastante mais acessíveis, donde não posso deixar de mencionar os famosos livros de Farmácia Galénica e Tecnologia Farmacêutica do professor L. Prista e outros, que nunca são mencionados (sorriso), dos quais tenho na minha estante a quarta edição. Adicionalmente, a frequência das bibliotecas era uma realidade. No início do curso, a biblioteca da faculdade era realmente exígua, era preciso encolher a barriga para conseguir passar por entre as mesas (sorriso). Conforme mencionou, ficava no famoso ‘Castelinho’ com as suas duas palmeiras, na Avenida das Forças Armadas. Aproveito a ocasião para apelar à sua reabilitação, pois que se encontra actualmente num estado degradado e as palmeiras foram retiradas e não substituídas. A importância da presença destas palmeiras é simbólica em relação às Ciências Farmacêuticas. Em torno daquelas palmeiras decorreu parte da nossa praxe académica (e desafio-o ao dizer corrido do ‘ácido tetra-amino-tetra-acético’), que foi bastante amigável e divertida e deixou boas recordações.
A biblioteca permitia-nos o acesso à consulta, além dos livros, das revistas científicas com os artigos publicados e a bases de dados de acesso controlado de artigos científicos via computador da faculdade. Em 1996, a faculdade inaugura novas instalações e a biblioteca é transferida para um espaço adequado, que ainda pude usufruir.

num evento organizado pela Associação de Estudantes conhecido por “Farmo”
Como era a vida social na Faculdade? Já existiam as famosas Farmos?
Sim, já existiam as Farmos e eram uma maravilha. Muito bem organizadas, acabávamos por conhecer pontos diversos de Portugal e eram uma forma de, enquanto colegas, ficarmos mais próximos no convívio fora do ambiente académico. Tínhamos de ser capazes de gerir os nossos recursos e tratar dos assuntos logísticos, como compras e cozinhados para tanta gente. Trouxe de uma das Farmos uma receita de massa com salsichas que fazíamos porque era saborosa, fácil, barata e enchia convenientemente as barrigas e, aos dias de hoje, ainda me dá muito jeito quando estou em modo de preguiça. Recordo que participei em várias mas não posso contar porque o que se passa na Farmo fica na Farmo (brincadeira).
Penso que a primeira em que participei foi uma ida à Serra da Estrela, a única vez na vida em que me arrisquei a esquiar. Foi mesmo uma aventura para mim. Seguiu-se São Pedro do Sul, que é uma região lindíssima e onde fomos fazer umas provas de champanhe (espero não estar a falhar nas memórias, mas sei que andei por aí a beber champanhe). Na Farmo Alvor fizemos praia, claro, e lembro-me que, na altura, muito cantarolávamos as músicas da Mafalda Veiga. À parte das Farmos, recordo a existência, na Faculdade, de uma mesa de matraquilhos que não tinha descanso e os almoços na cantina. Não sou o melhor exemplo de vida social académica, tinha um grupo próximo de amigos mas era um bocado recatada. Orgulho-me do facto da turma FFUL 93/99 ter sido a fundadora da Tuna Académica da FFUL (a TAFUL), esses colegas, sim, teriam muitas histórias boas para contar.
Em que zona de Lisboa vivia? Era fácil encontrar casa naquela altura?
No meu primeiro ano em Lisboa, vivi num quarto alugado em Campo de Ourique, na Rua Coelho da Rocha. A proprietária da casa era de Reguengos e foi assim que se tomou conhecimento da vaga. A partir do segundo ano, transitei para uma partilha de casa numa vila alfacinha, a Vila Pinto, na Rua Tomás Ribeiro em Picoas, onde residi até terminar o curso e donde sobrevieram amizades para a vida. Os anúncios de locais para acomodar estudantes eram abundantes nas próprias faculdades, não me apercebi nem vivi a experiência de qualquer dificuldade de alojamento. Não era barato, já na altura, mas penso que não tão dispendioso como actualmente.
Frequentava o teatro, leituras de poesia?
Eu iniciei as leituras de poesia, no sentido da palavra dita, apenas quando criei o canal de Youtube ‘Balcão do Poema’, em 2018, para dar voz a um conjunto de poemas que tinha escrito no blogue com o mesmo nome (a história ‘A vida em redor de uma mulher que busca a felicidade’), com um grupo de amigas que se dispuseram a apoiar-me nesta brincadeira. Gostei tanto da experiência que quis melhorar o meu dizer da poesia participando num workshop de voz e dicção com o encenador João Rosa, nas Oficinas de Teatro de Lisboa do Teatro Armando Cortez (Casa do Artista). Foi também só a partir daí que comecei a participar em encontros de leitura de poesia, nessa altura, na Biblioteca Municipal da Póvoa de Santa Iria, onde resido. Quando vim para Lisboa, em 1993, em termos culturais, o que mais frequentava era o cinema e, de vez em quando, o teatro pois era mais dispendioso. No período em que vivi em Campo de Ourique, com as Amoreiras à distância de uma breve caminhada, era certo que todas as segundas-feiras estava no cinema. A segunda-feira era o ‘dia do estudante’ no cinema, com bilhetes mais baratos, e eu não desperdiçava essa oportunidade. Quando fui viver para a zona das Picoas passei a ter cinemas ainda mais perto de casa, no Monumental e depois no Saldanha Résidence e o Teatro Villaret ao virar da esquina. Isto foi como oferecer bombons a uma gulosa! (sorriso)
A par com o cinema e algum teatro, gostava muito – e ainda o faço ao dia de hoje – de entrar nas livrarias e deambular pelas estantes e bancadas, a descobrir novos livros de autores conhecidos, novos autores ou novos assuntos. Foi assim que descobri, por exemplo, a existência do Hatha Yoga, numa livraria, e iniciei a sua prática como auto- didacta, com o livro aberto no chão a dar indicações sobre como executar. Frequentava muito as bibliotecas para estudar fora de casa, acabando por conhecer verdadeiros monumentos. Recordo-me de ir estudar para a muito clássica e lindíssima Biblioteca Nacional de Lisboa; para a Biblioteca do Campo Pequeno com a sua pequena esplanada e jardim, onde me distraía a observar tudo em meu redor; a Biblioteca de Arte da Gulbenkian, onde rapidamente me dispersava das matérias farmacêuticas para mergulhar nos livros de arte; a mediateca do magnífico Edifício Sede da Caixa Geral de Depósitos; o local estudantil ‘Espaço Ágora’, inaugurado em 1996 e localizado, na altura, no Cais do Sodré.
O curso de Ciências Farmacêuticas foi a primeira escolha no acesso à Universidade?
Sim, foi a minha primeira escolha, embora quando a fiz não estivesse certa do curso que pretendia, porque gostava de diferentes matérias na área de ciências. Escrevi para a Faculdade de Farmácia de Lisboa a pedir o currículo do curso, na altura o contacto era por carta, não existiam os emails. Recebi resposta e achei que ia gostar das disciplinas do curso, por isso, coloquei em primeiro lugar, seguido de outras opções todas diferentes e por ordem decrescente daquilo que eu achava que eram as minhas afinidades, tudo muito teórico, claro. Acabei por entrar nesta primeira opção, e ainda bem, porque, efectivamente, foi a melhor escolha para mim e estou muito satisfeita com a minha área científica.
Pensou, em algum momento, em seguir a carreira académica?
Não. Com o decorrer do curso, na altura com cinco anos curriculares e seis meses de estágio (pré-bolonha), ficou muito bem definido o meu ramo de interesse e que tem sido a indústria farmacêutica, em diferentes áreas técnicas do medicamento (não relacionadas com marketing e vendas).
Em 2000 entrou na Indústria Farmacêutica. Como foram os processos de selecção e as entrevistas para o primeiro emprego?
Eu queria muito trabalhar em indústria farmacêutica mas a principal via de saída profissional era a farmácia comunitária, onde fiz o meu estágio curricular, pois era o que o mercado de trabalho mais pedia e publicitava. Por isso, fui pró-activa e, ainda durante o estágio, iniciei um processo de auto-candidatura enviando o meu modesto currículo, de farmacêutica sem experiência profissional, para uma série de empresas. Procurei por multinacionais no Índice Nacional Terapêutico (o livro de referência com a listagem dos medicamentos aprovados para comercialização, pois não existia o actual Infomed disponibilizado no site do Infarmed) e enviei cartas para cerca de duas dezenas de empresas. De algumas recebi resposta negativa, outras não deram qualquer resposta num espaço curto. Através da Ordem dos Farmacêuticos, soube de uma vaga temporária, uma licença de maternidade, numa pequena fábrica nacional de medicamentos em Benfica, a Produfarma, que eu aproveitei como porta de entrada para o ramo que eu queria. Estive pouco mais de um mês neste local, no final de 1999, pois, entretanto, recebi um telefonema em resposta a uma das minhas candidaturas espontâneas, mais de seis meses depois de enviada, para uma vaga que surgira numa das multinacionais do meu interesse. É esta a vaga que considero como o meu primeiro emprego na indústria farmacêutica por corresponder ao perfil de função e de empresa que eu procurava e com perspectiva de continuidade. Fiz uma entrevista presencial, claro!, com a minha futura chefia, fui logo seleccionada e assim dei início a este meu percurso profissional.
Fale-nos um pouco deste percurso.
Tenho um grande carinho e boas memórias sobre os meus primeiros anos na indústria farmacêutica. Considero que os meus primeiros anos de trabalho, passados na fábrica de embalagem de medicamentos da Unilfarma – a filial em Portugal da alemã Boehringer-Ingelheim- constituíram uma verdadeira escola prática, para quem não tinha experiência. Boas práticas de fabrico de medicamentos, trabalho em equipa, melhoria contínua, produtividade, eficiência, tudo isto foram novos conceitos que passei a incorporar no meu desempenho diário. Eu gostava imenso dos equipamentos farmacêuticos, por exemplo, observar uma encartonadora a funcionar era fascinante para mim. Assistia a um mistério da engenharia que conseguia colocar um equipamento colossal a fechar delicadamente as frágeis paletas de pequenas cartonagens de medicamentos, em alta velocidade e sem as danificar. Estive quatro anos neste acompanhamento operacional, mas a fábrica acabou por encerrar e eu transitei para a secção de garantia de qualidade, já sem produção, onde permaneci os anos seguintes. Acabei por mudar de empresa, para a OM Pharma- a filial em Portugal da suiça Vifor Pharma-, regressando à indústria com produção de medicamentos, que é o tipo de actividade de que gosto. Neste caso, candidatei-me por resposta a anúncio. Já tinha 10 anos de experiência profissional, com muita variedade de actividades executadas, e fui selecionada para um novo desafio, iniciando funções numa área nova. Neste caso, fui gerir o armazém fabril a que, posteriormente, foi adicionada toda a área de logística, planeamento e compras. Tendo surgido uma oportunidade, fiz mais uma viragem no meu caminho farmacêutico e transitei para a direcção técnica fabril, função que mantenho até aos dias de hoje, embora, tendo, entretanto, transitado para outra empresa (Hovione Farmaciência- empresa nacional com actividade a nível internacional).
Conseguia conciliar os horários de trabalho da indústria com a vida pessoal?
Sim, sempre fiz um horário normal, diurno e sem turnos, por isso, a conciliação com a vida pessoal nunca foi um problema.
Quais são os principais atractivos da Indústria para os Farmacêuticos?
Isso depende bastante do gosto pessoal mas a Indústria Farmacêutica tem uma variedade muito grande de áreas onde os farmacêuticos podem exercer a sua actividade e ir crescendo profissionalmente. São, por exemplo, produção, supply chain, controlo de qualidade, garantia de qualidade, regulamentação, market access, entre outras. A sua actividade pode envolver diferentes etapas do ciclo do medicamento: research & development que corresponde a uma fase inicial de investigação dos princípios activos, formulações e processos de fabrico; medicamentos experimentais em que se estuda em humanos de forma restrita e altamente controlada o efeito dos novos medicamentos antes da sua comercialização em larga escala; medicamentos de uso humano, que serão depois distribuídos a nível hospitalar ou das farmácias comunitárias. Cada uma destas etapas tem especificidades regulamentares e guidelines próprias. Dependendo da empresa, pode ainda incluir a gestão de projectos com clientes nacionais e internacionais. Adicionalmente, o dia-a-dia é bastante animado, não há rotina. Implica uma constante aprendizagem e actualização, um pensamento orientado para solucionar desafios, tomar decisões, trabalhar em equipa, comunicar com eficácia, procurar melhorar processos, manter a compliance com as regras de cada mercado e europeias, equilibrando tudo isto com a satisfação do cliente. Fácil, não é? (sorriso) Todo este conjunto que apresentei torna, a meu ver, a Indústria Farmacêutica uma área profissional bastante estimulante.
Houve oportunidades para trabalhar fora do país?
Eu nunca pretendi trabalhar fora do país e tenho tido a oportunidade de crescer profissionalmente e ganhar conhecimento em Portugal. Sempre procurei multinacionais ou empresas nacionais com actividade global de forma a contactar com pessoas de diferentes nacionalidades e sair do país por períodos curtos – o tempo de uma reunião presencial, por exemplo – e regressar. Gosto muito da experiência internacional, mas sediada em Portugal porque aprecio viver no meu país. Estou no local certo para mim.
Quais foram as coisas mais complicadas que presenciou os maiores desafios no trabalho como farmacêutica?
As transições de funções e de empresas são sempre desafiantes porque implicam capacidade de adaptação e de aprendizagem. Eu passei por várias no meu percurso, mas considero importante ir conhecendo diferentes áreas porque permite ter uma compreensão da actividade como um todo, o que impacta positivamente a forma como se trabalha.
A nível profissional, quais são os seus planos a médio prazo?
Eu não elaboro planos a prazo, vou vivendo o dia-a-dia e fazendo aquilo a que eu chamo colocar tijolos para que, no surgimento de oportunidades, esteja preparada para ir construindo a casa que é a minha vida. É esta a forma de estar com a qual me identifico e estou satisfeita com o resultado.
Como exemplo, posso dizer que quando transitei para a função de direcção técnica fabril, entendi que para melhor exercer esta nova função necessitava aprofundar conhecimentos na área regulamentar. Fiz, por isso, o mestrado em Regulamentação do Medicamento, no decorrer do qual me apercebi da necessidade de aperfeiçoar a minha escrita científica. Neste momento, enquanto pretendo manter a minha actividade actual, de que gosto bastante, procuro acrescentar mais um tijolo, ou seja, conhecimento na área da escrita científica, tendo já iniciado a minha participação em formações.


E em termos literários, está a trabalhar em novos projectos?
Eu tenho dois projectos contínuos, que são o blogue onde escrevo a minha poesia e o canal Youtube onde publico o dizer do poema, para os quais já me é difícil tempo para a dedicação que mereceriam, mas que constituem uma fonte de renovação constante. Por isso, já fico satisfeita por conseguir mantê-los. Neste momento, a minha ambição literária passa por melhorar a minha escrita, e isso requer muita leitura de livros de outros poetas, e aperfeiçoar o meu dizer do poema, frequentando workshops de leituras encenadas, que ainda não iniciei. Gostaria muito de voltar a publicar um livro porque, para todos os efeitos, o objecto físico do livro continua a ser um gosto pessoal muito forte.
O Canal de Youtube de Sara Alfenim “Balcão do Poema”, criado em 2018