Sofia Abrunhosa, a Farmácia Comunitária sem cadeiras de serviço

Sofia Abrunhosa, a Farmácia Comunitária sem cadeiras de serviço

Há mais de 15 anos, Sofia Abrunhosa ajudou a criar os Serviços Farmacêuticos da Clínica São João de Deus, em Alvalade, tornando-se Directora Técnica. Regressou à farmácia Comunitária em 2023 onde destaca a necessidade de haver um maior conforto, como cadeiras, para os utentes e para os profissionais da farmácia.

Sofia Abrunhosa na sua nova vida de Farmacêutica Comunitária

Como foi o seu percurso até iniciar funções na farmácia actual?

Comecei o meu percurso académico pelo Curso de Biotecnologia. Quando o terminei, iniciei logo o de Ciências Farmacêuticas e nos três primeiros anos, estava na faculdade e dava aulas no ensino secundário de Biologia. Depois fiquei-me só pela faculdade até terminar o curso. Quando terminei fui para uma farmácia na baixa de pombalina. Farmácia bonita, num sítio bonito, com um público muito diverso. Gostei muito. Depois, a convite de uma amiga, fui trabalhar mais próximo de casa numa farmácia grande, com muito movimento, numa população muito diferente entre si. Também gostei muito. Um outro convite, levou-me a criar de raiz e a dirigir a farmácia de um hospital. Assim fiz. E fiquei durante 15 anos. Também a gostar muito. Desde o início de 2023, voltei à farmácia comunitária.

Como é o seu dia-a-dia no trabalho?

Trabalho numa farmácia que está envolvida em projectos interessantes. Uma farmácia que quer estar à frente. No entanto, a conformação da mesma, o movimento e a escassez de pessoal qualificado não permite que tudo seja feito com o rigor e seriedade que eu gostaria. Acho que este facto é transversal a muitas farmácias. Arriscaria, a todas as farmácias. A equipa é vasta e com tarefas distintas atribuídas. A mim, cabe-me a gestão da equipa, desde a estipulação de horários, marcação de formações para cada colega, administração de injetáveis e também o natural atendimento ao público. Também coordeno um projecto, no qual a farmácia está a participar, de seguimento de doentes com Diabetes tipo II.

E nas horas livres?

Tento estar o máximo de tempo que a vida me permite com a minha família: filhos, irmãos, mãe. Também tenho uma vida social bastante preenchida, graças à quantidade e qualidade de amigos que fazem parte da minha vida. Viajar é sempre um desejo e gosto muito de escrever, sobretudo contos. Tenho três livros publicados e três em andamento. Filmes e teatro e livros, são outras paixões que consumo sempre que posso. Cozinhar é também um prazer enorme.

Por que motivo escolheu a Farmácia Comunitária?

Como já referi, eu não escolhi a farmácia comunitária. A quase totalidade da minha actividade profissional foi em hospital. Foi a farmácia comunitária que me escolheu, agora.

Como foram as suas experiências anteriores? 

Posso dizer que todas têm saldo positivo. Os desafios foram interessantes. Dediquei-me muito e isso dá-me uma boa sensação de ter estado à altura do que esperavam de mim nos diferentes sítios. Creio que tive sorte nos locais por onde passei e com as pessoas com quem me cruzei. Tenho amigos que conheci em todos os locais onde passei e isso tem muita importância para mim. O facto de ter feito coisas muito diversas foi muito enriquecedor.

Quais foram as situações mais difíceis que presenciou em contexto laboral?

No hospital, e por ter feito a farmácia que não existia, na altura, à medida do mesmo, ter formado todo o pessoal, ter recrutado a equipa, foi um projecto muito dinâmico e desafiador. Talvez a parte mais difícil foi quando a administração optou por navegar em velocidade cruzeiro, sem espaço para promover e desenvolver mais e integrar novos desafios. Foi o que me foi, pessoalmente, difícil. Na farmácia comunitária, o que me é difícil, todos os dias, é o facto de estar, com grande custo físico, atenta às dores dos outros. Custa-me, fisicamente, e custa-me conceptualmente. Não percebo a razão de estamos horas e horas de pé, em sofrimento, a tratar da saúde e bem estar de outros que precisariam de nós melhor, mais disponíveis, mais confortáveis.

Numa altura em que há muitos licenciados a sair do país, a Sofia também ponderou emigrar?

Quando, aos 51 anos, voltei a procurar emprego, estava expectante. Saber como é que o meu país estava na questão do recrutamento de um cv um pouco mais complexo e mais experiência, quando vivemos num mundo da chamada carne para canhão onde todos somos simples números e, sobretudo, muito descartáveis e substituíveis. Pus-me no mercado e activei o Linkdin. Foi muito surpreendente a quantidade de convites. Muitas propostas em Lisboa e, também, muitas propostas para o estrangeiro. Não pensei em ir embora, apenas por uma questão familiar. Tenho três filhos, dois autónomos, mas um que será sempre dependente de mim.

A Farmácia Comunitária permite uma interacção diária e desafiante com os utentes. Que outros aspectos positivos destaca desta área?

O Farmacêutico Comunitário é o profissional de saúde que está ali mais à mão. Um médico pressupõe uma marcação, uma consulta, uma deslocação. O farmacêutico está ali, ao fundo da rua, e sempre disponível. Esta proximidade fácil, a quase qualquer hora torna-nos o primeiro contacto em qualquer situação de fragilidade. Esta sensação de conforto é importantíssima quando falamos de saúde, ou da falta dela. Somos o primeiro colo, nos momentos de aflição. Somos os que conhecem toda a família. Os que estão sempre.

A partir da sua perspectiva, que medidas tomava para melhorar a prática na Farmácia Comunitária?

Começaria por sentar os farmacêuticos e dar privacidade ao utente. É, no meu entender, contraproducente, e até meio medieval, um farmacêutico exercer a sua profissão em esforço físico contínuo. Não somos operários físicos. Considero ultrapassado. Não considero ética a exposição do utente a todos os outros utentes que estão na farmácia à espera da sua vez para, também eles, a serem expostos. Por que motivo todos os presentes têm que saber que aquele senhor é diabético, hipertenso ou tem disfunção eréctil? Porque é que o casalinho de adolescentes aflito tem que mostrar que dormiram juntos e alguma coisa não correu tão bem e ela vai tomar a pílula do dia seguinte? Porque é que a senhora tem que tornar pública a sua candidíase vaginal? Ou hemorroidal? O direito à privacidade não acontece na disposição física que as farmácias adquiriram há centenas de anos e mantêm, em pleno século XXI. Há que mudar o conceito, mudando a disposição, a forma de atender. Há que respeitar o farmacêutico! Há que respeitar o utente!

A presença de farmacêuticos ao balcão é uma das mudanças mais importantes da nossa profissão, mas as muitas horas em pé têm consequências para a saúde. Alguns proprietários já perceberam este problema e permitem o atendimento sentado para benefício de todos. Por que motivo isto ainda é uma excepção?

Porque tem custos para o proprietário. Vários. Desde as alterações físicas, que podem – deveriam – ser mais complexas, até à simples aquisição de um banco alto, às alterações de atendimento. O “despachar de fregueses” pode ficar comprometido. Ouvir o utente com mais disponibilidade acresce e melhora a qualidade do atendimento mas, para quem paga os vencimentos, pode ser uma desvantagem no valor de caixa ao final do dia. De pé “aviamos” mais rápido, ou assim se acredita que é.

O que será preciso para que os atendimentos mais longos tenham as condições devidas aos utentes e aos farmacêuticos?

Conforto e Privacidade. Dito desta forma podem parecem coisas demasiado simples e básicas. E são, efectivamente. Mas, ainda assim, imprescindíveis para que nasça, cresça e se instale um atendimento sério e de excelência.

Está a ser trabalhada a possibilidade de os doentes sem acesso ao Médico de Família poderem renovar receitas de medicação crónica nas farmácias. De que forma esta medida poderá contribuir para a autonomia e responsabilização dos Farmacêuticos por este serviço?

Esta medida permite ao utente não pagar a totalidade do medicamento e poder beneficiar da comparticipação do Estado. Apenas isso. Creio que, actualmente, nenhum utente fica sem acesso a medicação crónica (diabetes, tensão arterial, colesterol…) por falta de receita médica. Os farmacêuticos conhecem as consequências desta falta de cumprimento da terapêutica e estou em crer que dispensam sempre, apesar da legislação obsoleta e desajustada. A autonomia e a responsabilização do farmacêutico passariam, por exemplo, pela possibilidade de escolha de uma alternativa quando um determinado medicamento esgota. Isto sim, demonstraria o reconhecimento do medicamento pelo farmacêutico. Aviar o mesmo medicamento durante um período de tempo mais alargado não é reconhecimento de competência nem de responsabilidade. É facilitar o utente a ter comparticipação do Estado durante mais tempo, com menos idas aos médicos, que também vão sendo escassos. Se esta medida não for feita de forma séria e controlada, pode transformar-se, apenas, numa justificação para os utentes terem cada vez menos acesso ao médico, não ocorrendo revisão terapêutica e análise do estado do utente.

E estarão os Farmacêuticos preparados, técnica e cientificamente, para estes desafios?

Os farmacêuticos, sem qualquer dúvida. O problema está na pouca quantidade de farmacêuticos que estão nas farmácias. Este conhecimento e preparação tem um custo para os proprietários das farmácias. Muitos estão a optar por colaboradores mais baratos.

Qual a sua opinião quanto à valorização dos farmacêuticos hospitalares?

Como já referi, criei de raiz e dirigi durante 15 anos, uma farmácia hospitalar. Na minha experiência em concreto, senti que havia uma interacção muito respeitosa e de reconhecimento entre médicos-enfermeiros e farmacêuticos. Não sei se é uma realidade global, mas comigo aconteceu assim. Era um hospital pequeno onde todos os colaboradores se conheciam entre si. Até o meu estágio académico foi num hospital pequeno (Hospital de Marinha) e senti o mesmo. Noutra dimensão de hospitais não sei como será. Talvez as pessoas com mais dificuldades neste reconhecimento sejam os próprios gestores e administradores destes espaços, pelo desconhecimento da profissão e pelo foco nos números.

Como vê a evolução da profissão farmacêutica em termos globais?

Vejo-a sem pressas. Lenta. Com pouco ânimo para a mudanças que considero urgentes e imprescindíveis para que ela aconteça.

Aconselhava o curso de Ciências Farmacêuticas aos candidatos à Universidade?

Aos meus filhos, não. Aos meus netos, gostaria de já o poder fazer.

Como é que as competências dos farmacêuticos poderiam melhorar, de modo que a componente humana esteja ao nível do conhecimento científico?

O papel do farmacêutico, hoje, pode ser fundamental para o bem-estar dos utentes que chegam até nós. Não podemos reduzir-nos à frieza da entrega de caixas de medicamentos com extensas bulas de letras minúsculas sem que essas sejam claramente explicadas de forma compassiva e personalizada, por exemplo. Creio que a comunicação é essencial e sugeria que os farmacêuticos fossem formados em Mediação de Conflitos e até em Comunicação Não Violenta, uma técnica criada pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg, baseada na empatia. Temos de aprender mais e melhor a escutar e a falar, de modo a criar um conexão de confiança e de compreensão das necessidades e sentimentos de cada um dos nossos utentes.

Na sua opinião, de que forma os curriculos das faculdades de farmácia se deviam adaptar para dotar os futuros farmacêuticos de melhores instrumentos para responder aos desafios da longevidade, das patologias mentais, da desinformaçao, do acesso aos sistemas de saúde e das novas tecnologias?

Juntamente com a competência técnica que nos é fornecida, seria importante associá-la a uma competência social e humana. Lidamos com a parte frágil das pessoas. Temos que perceber se temos vocação ou capacidade para gerir essa tarefa da forma que tem de ser. Com conhecimento científico e humano. Com mais cadeiras nesta vertente durante o curso, sairíamos mais preparados para O Outro.

Quais são os seus projectos a médio prazo?

Não tenho feitio nem idade para projectos profissionais a médio prazo. Gostaria de tudo para ontem. Mais do que um projecto, tenho um sonho: ter voz para poder, com os meus conhecimentos e experiência, sensibilizar para o que está mal. Ser um alerta do que está errado. Ser uma propulsora de conceitos novos. Poder estar numa posição onde o som do que tenho para dizer saísse alto e pudesse ecoar.