Telma Martins: uma farmacêutica residente no Hospital Beatriz Ângelo

Telma Martins: uma farmacêutica residente no Hospital Beatriz Ângelo

Licenciou-se em Análises Clínicas e Saúde Pública e trabalhou durante vários anos como Técnica de Análises na empresa Medicil antes de iniciar uma segunda licenciatura em Ciências Farmacêuticas. Depois de passar pela experiência da farmácia comunitária decidiu concorrer à Residência Farmacêutica.

Telma Martins na Radiofarmácia do IPO de Lisboa

Como foi o seu percurso até começar a trabalhar em Farmácia Hospitalar?

Comecei por me licenciar em Análises Clínicas e de Saúde Pública, tendo trabalhado cerca de 9 anos nessa área. Durante esse período decidi voltar a estudar e completei o Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas. Trabalhei em farmácia comunitária desde então e, no ano passado, decidi concorrer à Residência Farmacêutica, programa que me encontro a frequentar atualmente.

Em linhas gerais como é um dia de trabalho?

Neste momento, estou numa fase de transição entre áreas. Comecei o meu percurso formativo pela farmácia de ambulatório e agora estou a fazer um estágio de três meses na área da Radiofarmácia no IPO de Lisboa.

Quais são as principais dificuldades?

As funções desempenhadas no âmbito da farmácia hospitalar são totalmente distintas das da farmácia comunitária. No que se refere à farmácia de ambulatório, que é, para já, a área com que tive contacto, os medicamentos dispensados são totalmente diferentes dos que estamos habituados a dispensar na farmácia comunitária. Têm mais particularidades (doses de carga consoante a patologia, interações, etc). Há muito para aprender em pouco tempo.

Como foram as suas experiências anteriores?

Antes de iniciar a Residência Farmacêutica, trabalhei em duas farmácias comunitárias. Na primeira, onde estive 4 anos, tive oportunidade de aprender muito e criar as bases que tenho atualmente. Era uma farmácia numa zona residencial em que, para além da dispensa de receitas, havia uma parte substancial das vendas associada à dermocosmética, o que me permitiu ganhar muita experiência e conhecimento nessa área também. Na segunda farmácia, a experiência foi muito curta, mas a população-alvo era totalmente diferente. O atendimento era mais focado no medicamento.

Numa altura em que há muitos jovens licenciados a sair do país, a Telma também ponderou emigrar?

Foi algo que pus em cima da mesa há alguns anos, mesmo antes de iniciar o Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas. Ainda hoje não é uma opção totalmente excluída, mas nunca foi uma coisa que quisesse muito, daí nunca ter tomado essa decisão.

Chegou a ter algumas propostas?

Sim. Já fui contactada várias vezes.

Quais são os principais problemas do mercado de trabalho em Portugal? Os salários baixos, os horários extensos, a falta de organização e de responsabilização, as relações profissionais tóxicas ou todas as opções?

Relativamente à farmácia comunitária, penso que talvez seja uma mistura de todos esses fatores. Efetivamente, a tendência é que os horários sejam cada vez mais alargados, retirando tempo importante às famílias, sendo que o retorno financeiro é também claramente insuficiente. Relacionado ou não, o facto de as pessoas não estarem satisfeitas, e terem de fazer cedências a nível pessoal, acaba por contribuir para a deterioração das relações entre colegas.

O seu primeiro curso foi na área das Análises Clínicas. Numa altura em que temos muitos colegas farmacêuticos a abandonar a profissão, quais foram os seus motivos para deixar a sua profissão e iniciar uma segunda licenciatura em Ciências Farmacêuticas?

Entrar em Análises Clínicas, na altura, já foi uma alternativa. Queria entrar em Ciências Farmacêuticas, mas os exames não tinham corrido muito bem e as médias eram bastante altas. Como não queria ficar parada um ano, escolhi um curso que tinha muito em comum com as Ciências Farmacêuticas. Acabei por gostar da área e nunca cheguei a tentar mudar.

Como era o seu dia-a-dia?

Terminei a Licenciatura em Análise Clínicas numa fase complicada, em plena crise. Trabalhei sempre em part-time, em postos de colheita. O meu horário de trabalho era entre as 7h30 e as 13h, fazia colheitas de sangue e de outros produtos biológicos, e assegurava também o processamento pré-analítico e o acondicionamento das amostras.

No âmbito do primeiro curso estagiou em hospitais do interior do país, quais são as principais vantagens de trabalhar em meio de baixa densidade populacional?

O tempo e a disponibilidade dos colegas para ensinar.

E as limitações?

Dependendo dos hospitais, a amostra em termos diversidade de casos clínicos é mais limitada.

Ponderou fixar-se em alguma dessas cidades?

Caso tivesse tido uma oportunidade em contexto hospitalar, teria aceitado sem qualquer dúvida.

Quais foram os motivos que a levaram a optar pela área metropolitana de Lisboa para viver e trabalhar?

O número de oportunidades de trabalho, ainda que precárias, não era comparável a qualquer cidade do interior. Assim que decidi fazer essa mudança, tive imediatamente uma proposta de trabalho, depois de ter passado vários meses sem que nada surgisse no interior do país.

A Farmácia Comunitária permite uma interacção diária e desafiante com os utentes em que é possível ter impactos imediatos na qualidade de vida de quem entra na farmácia. Que outros aspectos positivos destaca desta actividade?

Para mim, o mais importante e positivo é efetivamente sentir que fazemos a diferença. A realidade atual do SNS, em que uma percentagem muito significativa de pessoas não tem acesso a cuidados de saúde primários, torna o nosso papel ainda mais importante. Somos, muitas vezes, a primeira “pessoa” a quem recorrem e, infelizmente, muitas vezes também a única forma de receberem aconselhamento.

E as principais dificuldades?

A interação com os utentes tem tanto de recompensador como de difícil e desgastante. É sempre complicado lidar diariamente com tantas pessoas, seja em que contexto for.

A partir da sua perspectiva, que medidas tomava para melhorar a prática na Farmácia Comunitária?

A meu ver, acho que se perdeu um pouco o foco no medicamento. A farmácia comunitária atual é muito mais do que um ponto de dispensa de medicamentos. Apesar de compreender que as necessidades dos utentes são hoje também muito diferentes do que foram um dia, acho que não nos podemos esquecer que o nosso foco sempre foi e sempre deverá ser o medicamento, pois é isso que nos distingue verdadeiramente enquanto profissionais.

Do que é que tem mais saudades do trabalho em farmácia comunitária? Que alterações na prática lhe dariam vontade de regressar?

De sentir que sou útil à população, embora também o seja em contexto hospitalar. Neste momento, estou muito focada neste novo desafio, não pondero regressar.

Quais foram as coisas mais complicadas que presenciou no seu trabalho como farmacêutica comunitária?

A que mais me incomodava tinha a ver com a crescente tentativa por parte dos utentes de obter medicamentos sujeitos a receita médica sem a respetiva prescrição.

E na área das Análises Clínicas?

A falta de cumprimento de normas e procedimentos padrão nos diferentes postos de colheita e por diferentes profissionais. Para além das falhas do ponto de vista técnico, estas discrepâncias de metodologias de trabalho acabam, muitas vezes, por gerar situações de conflito com os utentes.

Segundo dados da Ordem dos Farmacêuticos, mais de 40% dos farmacêuticos inscritos tem idade inferior a 35 anos. Temos muitos colegas espalhados por muitos países. Como jovem farmacêutica, como vê a evolução da profissão farmacêutica em termos globais?

A profissão farmacêutica tem sofrido uma evolução muito dinâmica a nível global, com uma ampliação das áreas de atuação, fruto também da necessidade crescente de cuidados de saúde cada vez mais especializados. O fato de uma percentagem muito expressiva dos farmacêuticos ter menos de 35 anos é, na minha opinião, uma grande mais-valia e uma oportunidade de trazer para a profissão novas ideias e perspetivas, que são fundamentais para enfrentar os atuais desafios na área da saúde, associados à crescente prevalência de doenças crónicas e à necessidade de sistemas de saúde mais sustentáveis e acessíveis. A mobilidade dos profissionais é outro fator importante, que facilita e promove o intercâmbio de conhecimentos e práticas entre países, reforçando o papel da formação contínua e da flexibilidade, permitindo que os farmacêuticos se destaquem como líderes e agentes de mudança na saúde global.

Pessoalmente, penso que o futuro da profissão está profundamente ligado à nossa capacidade de inovar, colaborar e de nos adaptar-nos às novas tecnologias, sem nunca perder o foco no bem-estar do utente.

A Telma graduou-se na Universidade de Lisboa, na sua opinião, de que forma os curriculos das faculdades de farmácia se deviam adaptar para dotar os futuros farmacêuticos de melhores instrumentos para responder aos desafios da longevidade, das patologias mentais, do acesso aos sistemas de saúde e das novas tecnologias?

Os currículos das faculdades devem ser alvo de constante adaptação. Só assim podemos dotar os futuros profissionais das ferramentas necessárias para enfrentar os novos desafios que surgem constantemente na área da saúde. É essencial que haja um ênfase maior em disciplinas voltadas para o envelhecimento saudável, gestão de doenças crónicas e cuidados paliativos, áreas que serão tendencialmente mais necessárias numa população cada vez mais envelhecida. Para além disso, a familiaridade com as novas ferramentas, como inteligência artificial, telemedicina, e sistemas de prescrição eletrónica, é crucial para o farmacêutico moderno. É importante que as faculdades de farmácia integrem essas áreas no currículo, não apenas como componentes isolados, mas como parte do quotidiano da prática farmacêutica.

Existe, desde há alguns anos, uma certa ansiedade entre os farmacêuticos de que a antiga e nobre arte da dispensa e manipulação de medicamentos, tal como a temos conhecido, se extinga. Com a alteração do estatuto da Ordem dos Farmacêuticos, em especial do ponto que abre o acesso à profissão a não farmacêuticos, o receio tornou-se generalizado. Parece-lhe um exagero de uma área altamente regulada e de uma classe habituada à exclusividade no acesso à propriedade e à profissão ou estes receios têm fundamento?

Esse é um tema sensível. De certa forma, partilho esse receio.

Justifique a sua resposta tendo em conta o seu olhar clínico e a sua capacidade de distanciamento.

A introdução de novas figuras profissionais no setor pode levar-nos a pensar que os farmacêuticos perderão espaço ou que a qualidade dos serviços prestados será comprometida. No entanto, acredito que cabe a cada um de nós tornar evidente que a formação e a competência técnica do farmacêutico são insubstituíveis, especialmente em questões como a gestão da polifarmácia e das interações medicamentosas. Por mais que algumas funções possam ser compartilhadas ou divididas com outros profissionais, o papel do farmacêutico continuará a ser vital para o sistema de saúde. Embora o medo da perda de exclusividade seja legítimo, acredito que, em vez de extinguir a profissão, as mudanças podem abrir novos caminhos e fortalecer a posição do farmacêutico, desde que estejamos dispostos a inovar e colaborar com outros profissionais de saúde, e nos concentrarmos na melhoria contínua da nossa prática. No final, o foco será sempre o utente e a qualidade dos cuidados que podemos proporcionar.

Apesar de tudo, aconselhava o curso de Ciências Farmacêuticas aos candidatos à Universidade?

Claro que sim. Não há caminhos fáceis, seja qual for a área profissional. São os desafios que nos tornam melhores pessoas e profissionais. O mais importante é sermos fiéis a nós próprios e escolhermos a profissão com que mais nos identificamos.

Os farmacêuticos poderiam ser mais activos na solução para os problemas que o SNS enfrenta actualmente?

Sem dúvida, os farmacêuticos podem e devem desempenhar um papel mais ativo no que respeita a esta temática, podendo atuar em diversas frentes.

De que forma é que poderiam ajudar a melhorar o acesso e a qualidade dos serviços prestados?

Uma das maneiras mais eficazes é através da ampliação da sua atuação clínica, colaborando mais diretamente com outros profissionais de saúde no acompanhamento e gestão de utentes com doenças crónicas, por exemplo. A gestão da polifarmácia em idosos, a monitorização da terapêutica e o aconselhamento personalizado são áreas em que os farmacêuticos podem reduzir significativamente a pressão sobre o SNS, prevenindo complicações, reduzindo hospitalizações e melhorando os resultados em saúde. Além disso, os farmacêuticos comunitários, pela sua relação privilegiada com o utente, podem ser fundamentais na promoção da adesão à terapêutica, na educação em saúde e na prevenção de doenças, contribuindo para a redução da demanda por cuidados hospitalares. Iniciativas como a vacinação em farmácias, a realização de testes rápidos e a prestação de cuidados primários em ambientes comunitários são exemplos concretos de como o farmacêutico pode aliviar a pressão sobre os serviços de urgência e centros de saúde. No entanto, para que essa contribuição seja plenamente realizada, é necessário que haja uma maior valorização da profissão, com uma maior integração dos farmacêuticos em equipas multidisciplinares e com o reconhecimento de seu papel clínico no sistema de saúde.

E os Farmacêuticos Hospitalares? Estarão as suas competências técnicas a ser subaproveitadas?

Da pouca experiência que tenho em contexto hospitalar, penso que o papel dos farmacêuticos é fundamental e é reconhecido na sua generalidade. No entanto, podemos sempre fazer mais. Os farmacêuticos podem ter um papel central na otimização dos processos que envolvem o medicamento, na redução de erros e no aumento da eficiência dos cuidados, colaborando com médicos e enfermeiros para melhorar o uso dos medicamentos e garantir a segurança do doente. Outra área na qual podemos ter um papel importante é na farmacoeconomia, nomeadamente na gestão de recursos, na otimização e uso racional de terapêuticas de elevado custo e na promoção de terapias mais eficazes e acessíveis.

Como está a decorrer a sua experiência com Farmacêutica Residente? Quais são as suas expectativas?

Está a ser muito desafiante, pois é uma realidade totalmente diferente da que conhecia. Sinto que tenho um longo caminho a percorrer, o que, para mim, é também uma grande fonte de motivação. Considero que é uma oportunidade única de formação, que nos permite passar por diferentes áreas da farmácia hospitalar, dotando-nos de conhecimentos altamente especializados, e formando profissionais muito completos.

De que forma este processo poderá resolver a falta de farmacêuticos hospitalares?

Não será uma solução imediata, mas, a médio prazo, o número de profissionais formados e a sua capacidade de desempenhar funções em qualquer que seja a área da farmácia hospitalar vão ser uma grande mais-valia para o SNS, permitindo resolver o problema de falta de profissionais que se observa atualmente.

Quais maiores dificuldades que sente neste momento?

A necessidade de recuperar conhecimentos que não aplicava no dia-a-dia até então e o facto da realidade atual das equipas não lhes permitir ter o tempo que desejariam para nos poderem acompanhar de forma mais próxima.

Sendo um grupo profissional imprescindível no tratamento dos doentes em meio hospitalar, quais os motivos desta falta de atenção crónica aos Farmacêuticos Hospitalares?

Não sei, talvez os farmacêuticos até agora tenham estado sempre lá, a desempenhar as suas funções, com mais ou menos condições, com mais ou menos esforço, sendo menos reivindicativos que outras classes profissionais.

Na sua opinião, qual é o modelo de gestão que permite o melhor funcionamento das unidades hospitalares em relação à resposta aos utentes, à articulação das equipas de trabalho e à contenção dos custos?

Embora não tenha conhecimentos aprofundados sobre modelos de gestão hospitalar, acredito que a colaboração entre os diferentes profissionais de saúde é crucial, pois permite uma abordagem mais integrada e centrada no doente. Ao promover a comunicação e a cooperação entre diferentes áreas, é possível obter um melhor fluxo de informações e uma melhor coordenação dos cuidados, o que é essencial para a segurança e a satisfação dos utentes.

Quais são os seus planos a médio prazo?

Os meus objetivos profissionais neste momento passam por concluir o programa de Residência Farmacêutica e poder exercer funções como farmacêutica especialista em farmácia hospitalar.