Marina Leal: Directora Técnica da farmácia onde nasceu o Licor Beirão
É Directora Técnica da Farmácia Serrano desde 1992 e desde o início que tentou implementar novas soluções de gestão e de organização na farmácia, trabalhando sempre ao lado da sua equipa. A ligação ao Licor Beirão é uma boa história que valoriza o seu legado.

Como foi a criação da Farmácia Serrano?
A Farmácia Serrano é bicentenária. Em 2024, a Câmara Municipal fez uma homenagem às duas farmácias mais antigas da Lousã. Recebi uma Medalha de Mérito, pelos serviços prestados. E foi nessa altura que fiquei a saber que tínhamos mais de 200 anos e que a Serrano era a mais antiga, com 215 anos. Agora, já temos 216 anos e somos talvez uma das farmácias mais antigas do país.
Foi este o primeiro nome da farmácia?
Desconheço o nome da farmácia na sua origem. Quando o meu avô a comprou há cerca de 70 anos já se chamava “Serrano” pois era o apelido do proprietário da altura, o Professor Vale Serrano.


Em que circunstâncias passou para os actuais proprietários?
A farmácia está na minha família há mais de 70 anos. Foi comprada pelos meus avós, depois o meu avô fez uma sociedade com a minha mãe e actualmente essa sociedade pertence tanto à minha mãe como a mim. Esta farmácia ficava no centro da Lousã, na Rua do Comércio, mas quando vim para cá viver percebi que teria que mudar as instalações pois a zona de comércio já não era nessa rua centenária .Consegui transferi-la para o sítio atual mais perto de uma zona comercial. Comprei o terreno, fiz o edifício de raiz. Se o meu avô fosse vivo, não sei o que é que ele acharia da farmácia como está agora. Espero que ficasse orgulhoso. O meu avô era o típico farmacêutico de aldeia. Era aquele farmacêutico quase médico, aquela figura tutelar. Sempre disponível. Mas a verdade é que não é possível chegar a tudo, é preciso ser gestor!
Quais são as maiores dificuldades da gestão de uma farmácia?
Claramente lidar com pessoas. Quando vim para esta farmácia estava convencidíssima que ia ser farmacêutica comunitária e que ia tratar das questões do uso racional do medicamento, da reconciliação terapêutica e tudo o que diria respeito à profissão, mas passado pouco tempo percebi era muito diferente. Não fazia a mínima ideia de como se geria uma farmácia. Uma empresa. E a maior dificuldade que tive na altura foi a gestão de recursos humanos. Por exemplo, surge um conflito na equipa, como se lida com isso? Não fazia a mínima ideia. Mas, eu era uma miúda, tinha 24 anos. Faço muita formação na área de coaching e desenvolvimento pessoal porque tenho necessidade de lidar com a equipa e com os clientes. E, claramente, gerir e lidar com pessoas é um desafio enorme e o curso de ciências farmacêuticas não nos prepara para tal.


Mas há dificuldades acrescidas para os Directores Técnicos que não são proprietários…
Pois, essa é uma realidade que não existia quando eu comecei a trabalhar. De facto não têm os mesmos instrumentos. Um Director Técnico que não seja o proprietário tem um desafio acrescido, pois os colegas não lhe reconhecem autoridade. Quando vim trabalhar para esta farmácia a Direcção Técnica estava associada à propriedade e só um Farmacêutico é que podia ser proprietário.


E como é que mantém a equipa motivada e coesa?
No meu caso, a minha prioridade, desde que me levanto, é a minha equipa, claramente. Em cada dia tento ver se está tudo bem, se as tarefas estão de acordo com as pessoas que estão escaladas. E tento perceber sempre as dificuldades. Há uma coisa que consegui, que foi esta relação próxima com a equipa, o que implica um grau de confiança grande, mas com um grande respeito uns pelos outros. E a questão passa mesmo, por conhecer o perfil de cada elemento, tentar que estejam nos sítios certos e criar desafios. Por exemplo, hoje fui com a Tânia a uma escola da Lousã fazer uma acção de prevenção sobre o tabagismo. É importante fazer coisas diferentes e encontrar novas formas de motivação. Agora temos uma colega nova que veio de uma farmácia em Coimbra, de muita rotação, mas ela entende que aqui é mais difícil. Porque, os utentes não têm tanto poder de compra. Primeiro é preciso ganhar a confiança e para isso precisamos de uma grande resiliência.
E recebe estagiários?
Recebo estagiários de preferência de Coimbra, do curso de Ciências Farmacêuticas, mas também do curso dos Técnicos de Farmácia, que vêm muito bem preparados.
E quais são as estratégias para atrair farmacêuticos?
É muito difícil. Os recém-licenciados não querem trabalhar em farmácia comunitária. Preferem a indústria e os hospitais em especial por causa da Residência Farmacêutica. Apesar de tudo, o nosso horário é muito bom, entramos às nove, saímos às dezanove. Podia fechar às oito ou às nove da noite, mas por respeito à equipa prefiro fechar às sete, porque ainda dá para jantar com a família. E uma vez que as quatro farmácias da Lousã dão-se muito bem e estão coordenadas, combinámos que devia ser assim. A que fica de Serviço ou de Disponibilidade é que assegura o acesso.


E têm programas específicos de Cuidados Farmacêuticos, por exemplo?
Temos, mas é muito difícil de implementar, porque se as consultas são gratuitas em todo o lado, ninguém aceita pagar por um serviço da Farmácia. E como o trabalho que não é pago não é reconhecido, é muito complicado para nós.
E como é que lidam com a competição das outras farmácias e das parafarmácias?
Temos uma relação de grande lealdade com as outras farmácias, como já disse. Para mim, a grande competição é com as lojas online. É uma coisa perfeitamente inacreditável. Como é que permitem aqueles preços abaixo do preço de custo. Se fôssemos nós éramos acusados de dumping… É uma verdadeira selva. Parece que estão a testar até onde é que o mercado presencial aguenta, até onde aguentamos. Ainda ontem dizia à equipa que vamos ter de repensar a dermocosmética, porque é uma guerra que não conseguimos combater. Não vale a pena. Há marcas que foram criadas pelas farmácias, que cresceram associadas à qualidade do nosso serviço e que as próprias farmácias só conseguiam introduzir sob certas condições. E agora qualquer loja online de esquina vende essas marcas por menos de metade do preço. Então, acho que temos de fazer opções. Por exemplo, nós vamos todos os anos com a equipa ao Infarma, que é uma feira que há em Espanha. Uma vez é em Barcelona, outras vezes é em Madrid. Todos os anos eu vou com alguém da equipa. Há vários anos que andamos a pensar em introduzir uma linha de maquilhagem, mas que é sempre arriscado em farmácia, até que me disseram que era exclusiva de farmácia e que não ia estar online. Este foi um factor decisivo, além de ser uma marca com muita qualidade, por isso decidi avançar. Mas temos sempre de tomar decisões difíceis. Os solares, por exemplo, é cada vez mais complicado, ficamos com as prateleiras cheias e depois temos de devolver por prazo de validade, mas com grande prejuízo.

Tem havido cada vez mais episódios em que os utentes se dirigem às farmácias para obter aconselhamento dermocosmético e depois agradecem e dizem que vão comprar on-line. Também acontece na vossa farmácia?
Acontece e alguns mostram-nos o preço na cara. Nem vale a pena ter ilusões, sem regulação o mercado online vai dar cabo de nós. Mas aqui entre as quatro farmácias da Lousã, felizmente, damo-nos lindamente. O que é óptimo e uma coisa rara. Até temos um grupo no WhatsApp em que trocamos ideias e organizamos horários e turnos.
Há mais de 100 anos, um dos tónicos digestivos criados no laboratório da vossa farmácia tornou-se tão popular que acabaria por ser comprado por um empresário para dar origem ao famoso Licor Beirão. Porém, tal como o farmacêutico John Pemberton, que criou a primeira fórmula da Coca-Cola, o farmacêutico da farmácia Serrano nunca chegou a conhecer o sucesso internacional do seu tónico oficinal. Como se chamava esse farmacêutico português? Podem contar-nos mais detalhes sobre esta história?
A história do Licor Beirão é muito antiga e quando o meu avô comprou esta farmácia o Licor já pertencia à família Redondo. Reza a história que a fórmula foi feita a partir de um xarope para a digestão. Um tónico criado antes do Professor Vale Serrano, penso que não terá sido ele, mas uma técnica que trabalhava na Farmácia. O que é certo é que, a partir de 1910, as farmácias deixaram de poder vender licores e o genro deste farmacêutico adaptou a fórmula para fazer uma coisa mais licorosa numa fábrica, ou seja, independente da farmácia. E foi então que o José Carranca Redondo comprou a fábrica e manteve muito viva, em termos de marketing, a ligação do Licor à farmácia. Ele dava muitas entrevistas e telefonava-me sempre, dizia, olhe, falei da sua farmácia. Ele era um génio do marketing, na altura, fazia coisas incríveis. Ainda nem se falava em marketing e já fazia pedidos de empréstimo no banco para publicidade. Imagine a cara do gerente ao perceber que o dinheiro ia ser gasto em publicidade. Ele era incrível. Não tinha grande interesse em evoluir na fábrica e uma vez ele disse-me que os computadores eram uma desgraça para a humanidade. Era uma pessoa extraordinária em todas as coisas que fazia. E o que é certo é que eles evoluíram muito e a nova geração tornou o produto numa marca internacional. A ligação à Farmácia Serrano é que já não é tão mencionada. Mas esta história de ter sido um farmacêutico a inventar a fórmula, tal como a Coca-Cola, é uma coisa que pega bem, até podia ser mais trabalhada.

Como lidam com este legado?
Gostamos de o mencionar apenas por curiosidade e temos uma excelente relação com os actuais proprietários do Licor Beirão que consideramos amigos.
Ainda fazem manipulados aqui na vossa farmácia?
Cada vez se fazem menos manipulados na farmácia Serrano, pois não foi a nossa aposta ao longo destes anos. Quando os manipulados começaram a ser remunerados de forma justa, o investimento requerido para uma boa produção já não era possível para nós. Também não tínhamos prescrições que justificassem o investimento.
E projetos para o futuro?
Projetos temos sempre, felizmente, a nossa equipa está sempre cheia de projetos. Somos dez entre o balcão, a loja online, o pessoal do marketing e das entregas, mesmo que não se façam muitas entregas, porque as pessoas preferem vir à farmácia, até as das aldeias lá de cima da serra. Mas temos muitas sessões informativas nas escolas e nos lares. Temos um projeto chamado Clube Sénior com turmas de pessoas mais velhas em que uma gerontóloga desenvolve programas cognitivos e de convívio. Eles vêm aqui à farmácia, temos aqui um espaço para eles e gostamos muitos. Fazemos todos os anos estas sessões. Temos muitas ideias, só nos falta mais tempo.




