Farmacêuticos na vanguarda da investigação sobre a COVID-19: Renato Ferreira da Silva
Renato Ferreira da Silva, de 27 anos, é investigador clínico e está a terminar o Doutoramento na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em parceria com a Unidade de Farmacovigilância do Porto, sobre novas terapias orais contra a COVID-19.
Renato Ferreira da Silva num simpósio da Sociedade Portuguesa de Farmacêuticos dos Cuidados de Saúde.
Como é que surgiu a oportunidade para trabalhar em investigação? Era uma ambição antiga?
Comecei a fazer investigação ainda durante o Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (FFUP). Iniciei com um projeto no campo do diagnóstico diferencial da azoospermia obstrutiva e não obstrutiva como alternativa não invasiva, no Serviço de Química Clínica do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP), em colaboração com o Serviço de Bioquímica da FFUP. Mais tarde, decidi fazer um estágio voluntário no mesmo Serviço do CHUP para me capacitar com a técnica de HPLC (High Performance Liquid Chromatography). À data, pensava que o controlo de qualidade na indústria farmacêutica ou alimentar poderia ser uma das opções quando fosse concorrer ao mercado de trabalho. Foi uma experiência interessante porque conciliava a atividade de investigação com a rotina do hospital. Em 2019, ano em que concluí o Mestrado Integrado, iniciei atividade no Porto4Ageing – Centro de Competências em Envelhecimento Ativo e Saudável da Universidade do Porto, trabalhando em áreas como a adesão à terapêutica e o desenvolvimento de soluções digitais para a população geriátrica.
Quais são os principais atrativos deste trabalho?
Sem dúvida a liberdade de “hipotetizar” novas teorias e formular novas perguntas de investigação. Isto é certamente válido para qualquer cientista, independentemente do local de trabalho. Ainda assim, acredito que seja mais fácil exercer esta liberdade científica quando estamos na academia, do que quando exercemos atividade profissional numa empresa privada, com um portefólio restrito e com interesses no mercado.
A investigação da academia é muito diferente da investigação empresarial?
Não sei responder, com certeza, a esta questão. Não acredito que haja diferenças substanciais em termos de qualidade na investigação, até porque muito do que se faz no contexto empresarial é com a colaboração da academia. Porventura, existem objetivos, interesses e recursos diferentes. Desde logo, há um ponto que é muito claro na relação entre a academia e as empresas: o tempo é diferente para ambas. A academia quer ter tempo para estudar a fundo as questões a que se propõe, enquanto que as empresas têm mais urgência, porque têm de aproveitar o tempo do mercado.
Há também a crítica de que a academia tem dificuldade em criar bens transacionáveis com valor acrescentado para a sociedade. Penso que já foi um problema maior no passado, mas também é preciso entender que nem toda a investigação tem essa capacidade de criar algo no imediato. A natureza mais ou menos aplicada dos projetos de investigação é que determina a capacidade de resolução de problemas concretos de forma mais célere.
Independemente do local em que se faça investigação, é importante garantir boas práticas e preceitos metodológicos robustos. O que distingue o conhecimento empírico do conhecimento científico é o método – o método científico.
Quais as principais dificuldades na investigação?
A ciência aproxima-se da arte pela criatividade que podemos colocar no que fazemos. Aquilo que provavelmente as distingue é que a arte pode ser uma atividade singular, individual e realizada na solidão. Já a ciência, a verdadeira ciência!, é sempre coletiva. Esta última, implica necessariamente um conjunto de investigadores, de áreas diversas, e que com funções diferentes trabalham para objetivos comuns. O cumprimento da premissa do trabalho coletivo tem sido uma dificuldade com que me tenho confrontado, pela dificuldade de se conseguir constituir equipas sólidas ao longo do tempo e em número suficiente para conseguirmos avançar com projetos maiores. Mas acredito que esta dificuldade esteja, em parte, relacionada com as restrições de financiamento na contratação de investigadores ou, na minha área de trabalho, que outros investigadores que exercem atividade clínica consigam dispender tempo para a investigação.
Pode falar-nos um pouco sobre o seu tema de investigação?
A minha atividade de investigação é essencialmente clínica. Apesar do meu contacto inicial com a investigação pré-clínica/experimental ter sido bastante positivo, sem dúvida que o meu interesse passa por investigação diretamente com seres humanos, doentes ou saudáveis. O meu trabalho de investigação no doutoramento está relacionado com a monitorização da segurança e efetividade das terapêuticas farmacológicas utilizadas na COVID-19, nomeadamente na realização de estudos pós comercialização. Tenho um conjunto de trabalhos em curso no campo da farmacovigilância, sendo um deles o estudo ESOA-19, um estudo de coorte prospetiva, multicêntrico em vários hospitais nacionais e unidade locais de saúde, para monitorização da segurança, efetividade e adesão à terapêutica dos novos antivirais orais para a COVID-19. Tenho também realizado vários trabalhos de síntese de evidência, nomeadamente revisões sistémicas e metanálises de perguntas de investigação de natureza clínica.
Onde realiza a sua atividade de investigação?
Estou afiliado à Unidade de Farmacovigilância do Porto, uma das dez unidades regionais de farmacovigilância do Sistema Nacional de Farmacovigilância. Esta Unidade, por inerência de estar sediada na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, tem uma relação muito próxima com a prática de investigação. A atividade da Unidade passa pela rotina do processamento e análise de casos de suspeitas de reações adversas a medicamentos que são notificados, mas a investigação é também parte do trabalho. Durante a pandemia estivemos envolvidos em projetos de investigação europeus na monitorização das vacinas. Além disso, encontro-me afiliado ao Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, no grupo PharmaHTA – Terapêutica, Farmacovigilância e Diagnóstico de Hipertensão, da linha temática de investigação clínica e de translação. Mais recentemente, afiliei-me como investigador colaborador no grupo de Farmacoterapia e Farmacovigilância do ABC-RI, Algarve Biomedical Center Research Institute.
Como é o seu dia-a-dia no trabalho? E nas horas livres?
Um dos aspetos que mais valorizo no meu trabalho, é a possibilidade de gerir a minha agenda. Mas como em tudo, a isenção de horário é uma faca de dois gumes. Trabalho muito mais horas do que seria expectável para um equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, sobretudo pela acumulação de projetos na investigação, a atividade docente, mas também pelas responsabilidades inerentes à minha participação no associativismo farmacêutico e a ligação a sociedades científicas. Empenho-me nas horas do dia em que sei que sou mais produtivo, normalmente de manhã cedo, e onde privilegio atividades mais complexas. Deixo para o final da tarde e noite tarefas mais burocráticas e rotineiras. As obrigações fazem com que frequentemente trabalhe fora de horas, à noite e fins de semana. É uma opção nesta fase da minha vida mas que espero que tenda para um equilíbrio maior no futuro.
Pondera avançar para o Pós Doutoramento?
Nunca nego nada à partida. É uma questão a considerar, embora o interesse atual de se fazer um pós-doutoramento, não conferente de grau, seja muito questionável. Mas isso não diminui em nada o interesse futuro em continuar a realizar investigação clínica.
Quais foram as situações mais complicadas que presenciou em contexto académico?
Há sempre questões sensíveis, não exclusivas do contexto académico, sobretudo porque mexem com o ego e os valores individuais de cada um. Não são inéditos os relatos de fraude académica por falsificação de resultados e a apropriação indevida de dados de investigação. Felizmente, não têm sido realidades nos meus locais de trabalho.
A partir da sua experiência, que medidas tomava para melhorar as condições de investigação em Portugal?
Há muita coisa a fazer em muitos campos diferentes. Desde logo, a questão da precariedade dos investigadores científicos em Portugal. Já se percebeu desde há muito que não é uma prioridade dos governos. Legisla-se medidas pontuais, que tapam um problema, mas germina logo outro ao lado. Enquanto não houver uma política sólida nesse campo, continuaremos com os mesmos problemas.
No campo da investigação clínica em concreto, deveríamos ter fontes de financiamento que nos permitissem ter uma investigação clínica independente. Em Portugal, não temos fundos de financiamento para investigação académica. Estamos muito reféns do tipo de estudos clínicos que a indústria farmacêutica queira realizar.
Numa reunião de trabalho da Secção de Assuntos Regulamentares e Qualidade da Sociedade Portuguesa de Farmacêuticos dos Cuidados de Saúde (do lado direito)
Chegou a trabalhar em Farmácia Comunitária ou teve apenas a experiência do estágio?
Tive apenas a experiência de quatro meses do estágio curricular. Foi o tempo suficiente para perceber que não é a área profissional que mais me atrai, desde logo pelo modelo que é assumido pela maioria das farmácias. Talvez um dia eu possa retomar essa atividade a tempo parcial.
A Farmácia Comunitária permite uma interacção diária e desafiante com os utentes. Que aspectos positivos destaca desta actividade? E os negativos?
A farmácia comunitária é, sem dúvida, umas das áreas nobres da profissão farmacêutica. A extensa capilaridade das farmácias comunitárias e a possibilidade de qualquer cidadão entrar, sem compromisso, e solicitar um esclarecimento clínico, faz das farmácias umas das primeiras portas de entrada do utente no sistema de saúde.
Infelizmente, as farmácias comunitárias têm assumido ao longo dos anos um modelo muito centrado no produto e muito pouco nos serviços e no acompanhamento clínico dos utentes. É inegável que as farmácias são também espaços comerciáveis e que têm de dar lucro. Mas não sou sensível ao argumento de que a premissa anterior seja mais importante do que o acompanhamento clínico do utente. Esta é uma discussão complexa, não consensual e que divide os diferentes agentes do setor. Ainda assim, só há uma única forma de mudar este paradigma de farmácia: com uma nova geração de farmacêuticos!
Como vê a evolução da profissão farmacêutica em Portugal?
A profissão farmacêutica tem de se voltar a centrar nas atividade em que efetivamente o farmacêutico consegue gerar valor acrescentado face a outros profissionais. Estamos a falar de atividades de natureza essencialmente científica. Atividades de natureza mais técnica podem até ter a intervenção do farmacêutico em fases muito específicas do processo, mas existem atualmente outros profissionais altamente capacitados para as conseguirem concretizar. Por essa razão, defendo que temos de ser cautelosos no argumento de que as faculdades não vão de encontro às necessidades do mercado. De facto, há um indiscutível hiato entre as necessidades do mercado de trabalho e o compromisso da academia com o conhecimento científico. Esse hiato deve e pode ser diminuído de forma quase instantânea. No entanto, temos de reconhecer que a academia não pode estar refém apenas das necessidades do mercado. Há um risco real de se instrumentalizar o conhecimento, assim como torná-lo excessivamente técnico, em resposta a um mercado cada vez mais automatizado pela inteligência artificial, em detrimento de conhecimento baseado no método científico e no raciocínio lógico.
Para o futuro da profissão farmacêutica, deposito a minha esperança nos farmacêuticos da minha geração e das gerações seguintes. Não temos soluções mágicas para velhos problemas. Temos acesso a um conjunto de novas dimensões do conhecimento, tais como a inteligência artificial, a robótica, a experiência do e-learning, a simulação clínica, que vão permitir que o farmacêutico (clínico!) do amanhã tenha acesso a novos instrumentos e condições de trabalho, e não se perca em funções técnicas e rotineiras de baixo risco e excessivamente burocráticas.
É possível conciliar atividade de investigação com a prática profissional?
Defendo acerrimamente que a atividade de investigação deve ser complementar à atividade assistencial do farmacêutico. Consigo até conceber carreiras académicas, sem atividade assistencial, mas tenho alguma dificuldade em alimentar a ideia de um farmacêutico com atividade assistencial sem participar, ainda que pontualmente, em atividades de investigação e divulgação científica relacionadas com a sua prática clínica. Temos de tornar a carreira farmacêutica mais atrativa do ponto de vista das condições laborais, mas também do acesso a formação, capacitação para a investigação clínica e participação ativa nas sociedades científicas. Por vezes, o senso moral e ético não tem sido suficiente para nos motivar em atividades em que o farmacêutico é fundamental, deixando que outros, sem competências formais, as façam.
Todos os anos, durante os meses de Verão, há muitos alunos finalistas do secundário a preparar a candidatura à universidade. Que descrição faria do curso de Ciências Farmacêuticas e das saídas profissionais para ajudar estes candidatos a decidir?
Diria que a o papel central da atividade do farmacêutico, independentemente da área de exercício profissionais, passa pela melhoria da qualidade de vida do cidadão com ou sem doença. A profissão farmacêutica exerce-se nos mais variados setores de atividade, mais relacionados com atividade clínica, científica e académica, tecnológica, industrial ou regulamentar. Embora o medicamento seja a tecnologia de saúde que mais diz ao farmacêutico, a sua atividade é fundamental e insubstituível em outras áreas satélite do sistema de saúde.
Não gosto de falar de uma “profissão de banda larga” porque remete-nos para uma ideia de que o farmacêutico pode ser e saber de tudo. Isso é um utopia. Acredito que a formação académica é de facto alargada no que respeita à seleção de conteúdos científicos, mas cabe ao estudante durante o Mestrado Integrado em começar a afunilar os seus interesses, através da atividade de investigação e da escolha das unidades curriculares opcionais. Já no mercado de trabalho, o farmacêutico deve-se especializar nas suas áreas de interesse. Aliás, o modelo atual de desenvolvimento profissional contínuo transfere para o profissional a responsabilidade de atualização de conhecimento e de formação contínua.
Quais são os seus planos a curto e médio prazo?
A curto prazo, defender a minha tese de doutoramento e concretizar com sucesso outros projetos de investigação em que estou envolvido. A médio prazo, gostava de conseguir financiamento para estudar e desenvolver novas estratégias de farmacovigilância ativa para monitorização de medicamentos na prática clínica. Há um conjunto de desafios que se colocam no campo da farmacovigilância, desde logo a integração da inteligência artificial nas atividades de rotina ou o estudo de novos métodos de farmacoepidemiologia para a monitorização de terapêuticas na medicina de precisão.