Nasceu em Miranda do Douro, mas mudou-se para Vila Franca de Xira quando tinha 11 anos. Licenciou-se em 1988 na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, fez o Doutoramento na área da Microbiologia e actualmente é Professora Catedrática e líder de grupo na Unidade da Interação Hospedeiro-Patogeno do iMed.ULisboa. Realizou a sua primeira exposição de arte em 2022 no Palácio da Ajuda, em contexto do aniversário da Ordem dos Farmacêuticos.


Nasceu em Miranda do Douro, Trás-os-Montes, como é que acabou por escolher a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa?
A minha família mudou-se para Vila Franca de Xira quando fiz 11 anos porque em Miranda só havia liceu até ao 9º ano. Tinha que ir estudar para Bragança de outro modo. Lisboa acabou por ficar mais perto de casa.
O curso de Ciências Farmacêuticas foi a sua primeira escolha no acesso à Universidade?
Sim, foi a minha primeira e única escolha: primeiro na Universidade de Lisboa, depois na de Coimbra e em terceira escolha na do Porto. Eu queria seguir a área da saúde humana. Tinha média para entrar em medicina, mas definitivamente não queria o contacto direto com doentes. Fiquei marcada pela vivência que tive como filha de enfermeira e do contacto com o Hospital de Miranda anos 70 do século passado. Como só havia duas enfermeiras para todo o hospital nós passamos a dormir no hospital de duas em duas semanas . Conhecia todas as enfermarias, ala de cirurgia sala de partos, todos os cantos do hospital. Mas o grande inspirador da escolha do curso foi um professor de biologia que tive no secundário, o Professor Carvalho, que me motivou para a investigação e me mostrou as potencialidades do curso de Ciências Farmacêuticas nessa vertente de saúde humana.
Quais eram as expectativas?
Eu sempre me vi como investigadora e professora, posso dizer que as minhas expectativas foram completamente alcançadas. A minha mãe achava que eu devia ir para Belas-Artes, mas eu não encarava a arte como futura profissão.
Em que ano começou a fazer investigação?
Começou no terceiro ano, quando o Professor Moniz Pereira, com formação no Instituto Pasteur de Paris, onde tinha feito o seu doutoramento, perguntou que alunos preferiam fazer um trabalho de investigação em vez da avaliação convencional da vertente laboratorial da cadeira de Microbiologia. Foi uma porta que se abriu e que eu aproveitei na totalidade.
Qual foi o seu primeiro tema de investigação enquanto aluna?
Começou em sistemas de modificação-restrição, operão lactose e sistemas líticos/lisogénicos de bacteriófagos (vírus que infetam bactérias). Foram essas ferramentas genéticas que estiveram na base do meu trabalho de doutoramento no desenvolver de vetores de clonagem para micobactérias. A ideia era construir um vetor que se integrasse no genoma para desenvolver vacinas recombinantes estáveis derivadas do BCG que o tornassem uma vacina mais eficaz. Recorríamos a enzimas de restrição/ corte do DNA e a sistemas integrativos de bacteriófagos lisogénicos. Aquilo para mim era Microbiologia molecular fundamental. Só muito depois do doutoramento é que me consciencializei que comecei por mexer com os sistemas mais rudimentares de resposta imune inata a infeções como é exemplo a modificação-restrição. O genoma é restringido/destruído após a entrada do vírus ou modificado e sobrevive, fica imune às infeções futuras pelo mesmo tipo de vírus. Tem sido precisamente a exploração e manipulação das defesas imunes inatas e a ponte para as respostas adaptativas que acabaram por constituir o grande foco da investigação que tenho desenvolvido ao longo dos anos após o doutoramento.


Em que circunstâncias ingressou na docência?
Quando estava a acabar o estágio na vertente de análises químico-biológicas, o Professor Moniz Pereira contactou-me para saber do meu interesse em continuar em investigação. Ele tinha acabado de ter financiamento da JNICT para um projeto de investigação em desenvolvimento de sistemas de clonagem em micobactérias. Eu tive uma bolsa de iniciação à atividade científica desse projeto. Ao fim de 6 meses como bolseira abriu uma vaga para preenchimento de um lugar de assistente estagiário no grupo de ciências biológicas. O Professor Penha Gonçalves escolheu-me de entre todos os candidatos para o lugar onde iria lecionar na cadeira de biologia celular. O primeiro ano em que lecionei aulas laboratoriais foi muito marcante. O grupo de alunos era muito entusiástico e bem-disposto e deixaram todos memórias muito boas na minha vida. Vinha da experiência nas análises clínicas e lembro-me nas aulas, de tirar sangue a voluntários para fazer esfregaços para corar e observar ao microscópio, ou de sacrificar ratinhos para processar amostras de tecidos e órgãos em blocos de parafina para as aulas seguintes.
E, claro não podia deixar de demonstrar no laboratório de aulas o clássico de como é que funciona o operão lactose usando o modelo bacteriano da E.coli como exemplo de repressão genética. Este modelo que esteve na base da origem da biologia molecular valeu o prémio Nobel da medicina de 1965, a Jacques Monod, juntamente com a colaboração François Jacob e André Lwoff. É de Monod a famosa frase “Anything that is true of E. coli must be true for elephants, except more so”. Ele que publicou o livro “O Acaso e a Necessidade” deveria ser objeto de um registo da sua vida excecional no cinema. Prestava-se bem a uma distopia com os momentos que vivemos atualmente com a ciência. Um possível título poderia ser: Robert Kennedy Jr./Trump: the ghost of Lysenko in times of Monod. O modelo serve ainda para reforçar a ideia: use it or loose it. Com a moda da hipotética intolerância à lactose e de substituir os produtos lácteos para quem não é de facto intolerante ainda nos arriscamos a perder a capacidade de digerir o leite ganha pelos neandertais em tempos de fome (necessidade).

Quais foram os Professores com quem mais gostou de trabalhar?
Na faculdade de Farmácia tive modelos que influenciaram a minha carreira a nível de carácter e resiliência, mas não porque tenhamos trabalhado juntos em projetos de investigação como é o exemplo da Professora Maria Odette Ferreira. No Instituto Pasteur de Paris e no Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL) em Heidelberg tive contacto com muitos investigadores que me marcaram profundamente, era como viver ao vivo os autores cujos nomes eu encontrava no final dos capítulos dos livros por onde estudei toda a vida. Paul Lazarow foi estudante de doutoramento do prémio Nobel Christian de Duve e deu-me formação em lisossomas e peroxissomas. Ulf Nehrbass foi estudante de doutoramento do Günter Blobel, Nobel da Teoria do Sinal deu-me formação de transporte entre núcleo e o citoplasma. Jean Gruenberg e a esposa Gisou van der Goot juntamente com Gareth Griffiths que são ícones das vias endocíticas deram-me formação em tráfego intracelular e fagocitose. A Gisou tornou-se uma especialista a perceber o endereçamento de toxinas bacterianas dentro da célula, particularmente do Antrax, área altamente financiada depois do ataque terrorista às torres gémeas em 2001. Pascale Cossart é o meu modelo máximo nas interações hospedeiro-patogeno e na área da microbiologia celular, ciência que fundou. As bases dos conhecimentos transmitidos por ela vieram a permitir explorar a manipulação da célula hospedeira como o citoesqueleto de actina para controlar o bacilo da tuberculose em colaboração mais longa e interativa com Gareth Griffiths (EMBL). Não vou enumerar todos os que tive o prazer de conviver pessoalmente e que contribuíram muito para a minha formação senão esta entrevista nunca mais acaba…

Existe uma tradição de grande a rivalidade no meio académico. Como tem sido a sua experiência desde a entrada na docência na FFUL? Não sinto nem nunca senti rivalidade. Sinto sim uma necessidade cada vez mais intensa de desenvolver e estender colaborações para completarmos áreas com um fim comum. E porque enveredei por uma área que mais ninguém tinha conhecimento como o meu grupo, temos sido solicitados quer na faculdade de Farmácia quer a nível nacional ou internacional para estabelecer parcerias de colaboração que se têm revelado muito produtivas. Particularmente na faculdade de Farmácia e dentro do instituto de investigação que integro desde 2014, o instituto de investigação do medicamento iMed.ULisboa, a variedade de valências de especialização dos diferentes grupos de investigação tem sido muito produtiva em colaborações científicas que se complementam.
E na própria Universidade de Lisboa? Sentiu diferenças desde a fusão com a UTL?
Pessoalmente não senti essa diferença. Já colaborava antes com grupos do instituto Superior Técnico e continuei a colaborar depois da fusão das duas universidades. Penso que teve um peso muito grande em termos de representatividade e reconhecimento da U-Lisboa em termos de qualidade científica para ficarmos bem classificados comparativamente com outras universidades no mundo inteiro em rankings como o de Xangai.
Foi professora em várias cadeiras incluindo Biologia Celular e agora é regente de Imunologia no MICF e dá aulas de Microbiologia aos alunos de Pós-Graduação. Quais são as maiores diferenças entre o ensino nos anos de 1990 e actualmente?
A qualidade pedagógica e científica do ensino atual é sem dúvida muito maior. O corpo docente é constituído por pessoas que tiveram importante formação científica com doutoramentos, não apenas em Portugal, mas em colaboração com grandes institutos de investigação estrangeiros. Somos a primeira geração de docentes que começa a ter formação em técnicas pedagógicas para melhorar o binómio ensino/aprendizagem. Podemos ainda juntar a experiência pessoal científica para dar exemplos mais vividos dos conceitos científicos que queremos ensinar e não apenas dar exemplos que lemos nos textos científicos. Existe ainda uma grande colaboração das diferentes áreas profissionais para aproximar o ensino com o exercício da futura atividade dos alunos que não apenas a voltada para a investigação científica associada ao conhecimento dos docentes formadores. O acesso à informação não tem qualquer comparação com o dos anos 90. A inteligência artificial e o machine learning são o futuro que começa agora. O desafio? Capacitar os alunos com maior discernimento para procurar informação fidedigna, saber tratar essa informação e também saber comunicar na linguagem apropriada de forma clara e profissional. As aulas práticas tomaram maior relevância do que as laboratoriais pois o futuro farmacêutico não é mais o técnico que faz as análises, mas o profissional que tem de ter as ferramentas para interpretar, dar resultados, resolver os problemas.

E entre os alunos, sente que há mais interesse agora pela investigação?
Os alunos estão muito mais motivados para as saídas profissionais, mas se compararmos com os anos 90 o contacto com a investigação nos dias de hoje tem muito mais oferta durante o curso e, consequentemente muitos mais alunos que nos anos 90 ficam motivados para seguir uma carreira de investigação. Em alternativa muitos escolhem enveredar por um mestrado ou doutoramento e adquirir competências especificas para no futuro ingressarem numa carreira profissional.
Durante a pandemia de CoVid19 foram desenvolvidas vacinas inovadoras em poucos meses e iniciada uma campanha de vacinação inédita em todo mundo, o que permitiu salvar a vida de milhões de pessoas, em especial as que pertencem aos grupos de risco. No entanto, todo este processo acabou, de forma paradoxal, por gerar desconfiança em algumas franjas da população que apelidaram o processo concertado de resposta à pandemia de “fraudemia”. De que forma esta corrente anti-vacinas está a influenciar a opinião pública, as universidades e o futuro da investigação científica?
Os anti-vaxers sempre existiram e ficaram ainda mais efusivos por assistirem a esse processo rápido de desenvolvimento e aprovação de vacinas. O problema dessas pessoas é o da iliteracia científica. A história está cheia de “estórias” de sucesso da vacinação e da repercussão na longevidade da vida das pessoas. Quem conhece um pouco de imunologia e resposta às infeções sabe que esperamos uma resposta eficaz. Mas por vezes o organismo reage de forma anormal resultando autoimunidade hipersensibilidades. Também durante o estímulo imunológico por vacinas poderá haver respostas anormais, que usualmente não são tão intensas como as observadas durante o processo infecioso. Para isso servem os ensaios clínicos para validar o balaço entre eficácia e risco. A mais-valia da experiência da vacina para a Covid-19 é que se chegou à conclusão de que se podem tornar alguns processos regulamentares longos desnecessários em processos mais rápidos. Também só foi possível porque havia uma série de evidencias e trabalho científico já com mais de 12 anos que sustentaram o rápido desenvolvimento de vacinas a RNA eficazes. A experiência científica vai com certeza acelerar o processo de fazer vacinas no futuro. E tivemos a sorte de o coronavírus ter antigénios que estimulam o nosso organismo a uma resposta imune eficaz mesmo que dure apenas seis meses. Exemplos de imunidade longa que permitiram a extinção com sucesso de um patogeno como o vírus da varíola, não são assim tão comuns. É que o vírus da varíola ou a vacina derivada do vírus pox da vaca é capaz de induzir imunidade eficaz para toda a vida após a sensibilização. Na maior parte das vacinas conhecidas temos de levar reforços para avivar a resposta a essas infeções. Imagine se a pandemia com a transmissibilidade enorme associada tinha o problema da relação com o hospedeiro como no caso do HIV, malária ou da tuberculose para os quais após décadas de investigação ainda não foi possível chegar à oferta de vacinas que passem todos os ensaios clínicos? Depois há aquelas pessoas com medo/fobia irracional a vacinas que arranjam todos os não argumentos contra a inoculação. Não são estas pessoas que vão influenciar e parar o pensamento científico.

A quantidade de vídeos, de fazedores de opinião e de publicações a disseminar ideias anti ciência é cada vez maior. A comunidade científica deveria organizar-se para tentar conter os danos destas ideologias?
Vivemos tempos estranhos em que pessoas completamente iliteratas e com medo fóbico a vacinas chegam ao poder pela mão de outros iliteratos cuja sanidade mental é duvidosa. Os danos vão desde o corte do financiamento científico ao NIH, com repercussões na investigação em curso não apenas nos EUA, mas no mundo inteiro, às organizações não governamentais que suportam o acesso a medicamentos para doenças crónicas como para o HIV, tuberculose, entre outros. Vamos assistir não apenas ao aumento da mortalidade como ao aumento descontrolado das transmissões e ao aumento global de infeções. O Kennedy Jr. não acredita na teoria dos germes, e acredita que as vacinas pelo processo de fabrico vão incluir substâncias tóxicas que causam doença. Não há qualquer suporte científico ou publicação que sustente esta teoria. Mas o advogado com formação em leis acha-se suficientemente com autoridade para se pronunciar em termos científicos. Neste momento estamos a assistir ao aumento descontrolado de casos de sarampo em vários estados para além do Texas. Vincent Ricaniello um professor conceituado de virologia que divulga ciência no podcast “This week in virology” já brincou usando o título “we will make america sick again”. Em primeira instância é a America a autodestruir-se e a destruir as partes do mundo diretamente dependentes do seu suporte.
Não é apenas a comunidade científica que tem de organizar-se, são todos os decisores políticos e toda a população com discernimento que tem de deitar estes governantes abaixo. Por exemplo os autores de livros académicos bem conhecidos e a dotados como o do Norton, Essential Cell Biology , Bruce Alberts, Karen Hopkin e Keith Roberts abordam já essas questões, exploram por que a desconfiança na ciência é prejudicial à nossa sociedade e oferecem ideias sobre o que os educadores podem fazer a esse respeito. Instituíram um blog chamado “Separando fatos científicos da ficção científica: ferramentas para a literatura científica”. Aqueles autores ainda decidiram escrever um capítulo de 13 páginas disponível gratuitamente chamado “Por que confiar na ciência?”; que ferramentas estão disponíveis para os educadores científicos usarem e compartilharem com seus alunos; quais ações que podem tomar tanto na sala de aula quanto na comunidade em geral.

