É preciso mudar a forma como falamos de obesidade

É preciso mudar a forma como falamos de obesidade

De acordo com os últimos dados, mais de 28% da população portuguesa sofre de obesidade — uma condição que compromete significativamente a qualidade de vida e está associada a várias comorbilidades. Em entrevista à Salus Magazine, a nutricionista Mariana C. Duarte explica os principais impactos da obesidade na saúde, os desafios no tratamento e a importância de uma abordagem multidisciplinar e personalizada para a prevenção e controlo desta doença crónica.

Mariana C. Duarte é  licenciada em Dietética e Nutrição pela Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra

Porque decidiu seguir uma carreira como nutricionista? O que a levou a escolher esta área?

Nunca foi uma profissão que eu quis desde muito cedo, na verdade só descobri esta área quando estava na fase de candidaturas para a universidade. O que me fez despertar interesse em seguir nutrição foi o facto de ter vivenciado de perto, o impacto que a alimentação teve na saúde de um familiar. Nos últimos anos, devido a algumas questões de saúde que eu própria enfrentei, apaixonei-me pela área da nutrição gastrointestinal, que é neste momento a minha principal área de atuação.

Como nutricionista, como encara os últimos números que dão conta que de cerca de 30% da população adulta em Portugal tem excesso de peso?

É difícil ficar indiferente a estes números. Vivemos uma época em que se fala tanto de nutrição, temos acesso a imensa informação, mas na prática, continuamos a ver os casos de obesidade a aumentar. Como nutricionista, sinto que o nosso papel é precisamente ajudar a filtrar esta informação, ajudar a implementar mudanças de hábitos, simples, sustentáveis e adaptadas à realidade de cada indivíduo. Com um estilo de vida cada vez mais exigente, as pessoas precisam de ajuda para se organizar e orientar em termos nutricionais.

Qual o impacto que estes valores de obesidade podem ter para a saúde a longo prazo?

A longo prazo, sabemos que a obesidade aumenta o risco de desenvolvimento de outras doenças como a diabetes mellitus tipo 2, hipertensão arterial, doenças cardiovasculares, fígado gordo, doenças gastrointestinais, infertilidade, doenças musculosqueléticas, cancro. Além disto, a insatisfação com a imagem corporal pode levar a outro tipo de consequências para a saúde como a depressão e a ansiedade, comprometendo a qualidade de vida de quem sofre desta doença.

Como se define, hoje, a obesidade ? Houve alguma mudança de paradigma nos últimos anos?

A obesidade é uma doença crónica, multifatorial, definida pela acumulação de gordura excessiva ou anormal. Atualmente é diagnosticada com recurso ao Índice de Massa Corporal (IMC), sendo que um IMC superior ou igual a 30kg/m2 é classificado como obesidade. No entanto, este método tem sido criticado por não ser um indicador fiável da nossa composição corporal. Além do IMC, recorre-se à medição do perímetro abdominal, uma vez que o acumular de gordura a nível visceral constitui um elevado risco de complicações metabólicas. A utilização de balanças de bioimpedância, pode ser um método auxiliar de avaliação da composição corporal.

Este ano, num relatório publicado na revista The Lancet Diabetes & Endocrinology, um grupo de especialista propõe criar novos critérios de diagnóstico, mais precisos e focados na composição corporal. O objetivo é ir além do IMC, de forma a conseguirmos identificar dentro dos casos de obesidade, quem tem mais necessidade de tratamento.

Tendo em conta a sua experiência profissional, o que se poderia fazer para mudar, de uma forma geral, hábitos alimentares em Portugal?

Já têm sido adotadas medidas de prevenção da obesidade, em Portugal. No passado dia 4 de março (Dia Mundial da Obesidade), a Direção-Geral da Saúde (DGS) apresentou uma proposta de 10 ações que incluem medidas de prevenção e melhoria do acesso e da qualidade a cuidados de saúde, para pessoas que têm obesidade. Dentro destas 10 ações, estão incluídas medidas que apostam na educação alimentar da população. Desde cedo, esta educação alimentar é fundamental, de forma a que sejam criadas e implementadas as bases de uma alimentação saudável e equilibrada. Saber ler rótulos alimentares, por exemplo, é algo importante para que se façam escolhas alimentares conscientes e grande parte das pessoas, não o sabe fazer.

Os portugueses ainda têm bons hábitos alimentares?

Hoje em dia com os estilos de vida exigentes, vemos muitas pessoas sucumbidas ao stress da rotina, sedentárias, com má qualidade do sono e com pouca preocupação em relação à qualidade alimentar. Não podemos também ignorar as desigualdades económicas, que a juntar ao aumento dos preços dos bem alimentares, acaba por diminuir o poder de compra, influenciando as escolhas alimentares.

Quais são as recomendações dietéticas mais comuns que costuma dar a pacientes com obesidade?

O défice calórico é a chave para a redução do peso, ou seja, ingerir menos calorias do que as que gastamos, diariamente. É ainda importante olharmos não só para o aporte energético dos alimentos, como também para a sua qualidade nutricional. Costumo olhar para o dia alimentar da pessoa e sugerir trocas e alterações, adaptadas e personalizadas à pessoa que tenho em consulta. Além da reeducação alimentar, gosto de reforçar alteração de outros hábitos de estilo de vida, como gestão de stress, rotina de exercício físico, uma boa higiene do sono. Referir que todo este processo é individual e cada pessoa leva um ritmo diferente na adoção e mudança de estilo de vida.

Quais são as áreas em que considera que haverá mais evolução em relação ao tratamento da obesidade?

Recentemente temos visto muita polémica em torno dos fármacos aprovados, para perda de peso. Podem ser uma opção a considerar quando uma pessoa já tem um estilo de vida equilibrado, mas mesmo assim não é suficiente para melhor o quadro de obesidade. Reforço que a obesidade é uma doença multifatorial e em muitos casos é preciso considerar intervenção farmacológica e até cirúrgica. Quero deixar claro que tanto a intervenção farmacológica como a intervenção cirúrgica, não substituem, nem dispensam, uma boa base sólida de alimentação saudável, exercício físico, sono e saúde mental. Não há soluções rápidas, que nos tragam resultados a longo prazo, se não soubermos fazer o básico. Espero que haja evolução na valorização e criação de mais programas e abordagens multidisciplinares, de forma a darmos resposta a esta doença multifatorial e complexa. É preciso mudar também a forma como falamos de obesidade, com menos julgamento e com mais consciencialização e empatia de que é um grave problema de saúde e não simplesmente um desleixo individual.

Há estudos que revelam que as pessoas que sofrem de obesidade podem necessitar de maior suplementação de vitamina D. Concorda com isto? Na sua opinião, quais são os benefícios deste tipo de suplementação?

Sim, concordo. Estudos demonstram que pessoas com obesidade têm concentrações plasmáticas de vitamina D inferiores, comparativamente a pessoas normoponderais. Perder peso não é totalmente eficaz para aumentar os níveis séricos de vitamina D, em pessoas com obesidade. É necessário existir uma redução da gordura corporal, dada a relação direta entre tecido adiposo e o metabolismo da vitamina D. É importante a suplementar, uma vez que a obesidade por si só, constitui um fator de risco para diversas patologias, e o défice de vitamina D pode aumentar esse risco ou exacerbar patologias já presentes. Uma das consequências do défice de vitamina D é o maior risco de desenvolver resistência à insulina, que por sua vez, aumenta o risco de desenvolver diabetes mellitus tipo 2. Além disso, a vitamina D tem um papel importante na regulação do sistema imunitário, sendo que baixos níveis podem exacerbar a inflamação crónica de baixo grau, associada à obesidade.

Como a vitamina D está relacionada com o controle do peso e com a obesidade? Quais são os efeitos da deficiência de vitamina D sobre o metabolismo?

A obesidade constitui um fator de risco para o défice de vitamina D. Isto parece estar relacionado com a quantidade de tecido adiposo, sobretudo a nível visceral. Existindo uma maior capacidade de armazenamento de vitamina D, no tecido adiposo visceral, e a uma libertação mais lenta da mesma, na corrente sanguínea, é ajustar as doses de suplementação para obter níveis estáveis de vitamina D. Pessoas com obesidade precisam de uma dose maior de vitamina D, comparativamente a uma pessoa normoponderal. Além disso, obtemos vitamina D maioritariamente através da exposição solar, sendo que o sedentarismo e a baixa exposição solar, constituem outros fatores de risco para o défice de vitamina D, em pessoas com obesidade. A vitamina D apesar de não aumentar diretamente o peso, pode estar associada ao seu aumento, uma vez que tem um papel importante na regulação e manutenção do metabolismo do tecido adiposo.

No que respeita a obesidade infantil, na sua opinião, quais são os sinais de alarme a que os pais devem estar atentos? ou que estratégias devem os pais adotar deste a introdução alimentar para que isto não aconteça?

Alguns sinais de alarme que podemos considerar são o ganho de peso acelerado, preferência por alimentos ultraprocessados (ricos em açúcares e gorduras saturadas), sedentarismo e recusa de alimentos saudáveis. Desde a introdução alimentar, os pais devem incentivar diversificação alimentar, evitar alimentos ultraprocessados e promover uma relação saudável com a comida, sem usar a alimentação como recompensa ou castigo. Além disto, promover a prática de atividades ao ar livre é importante, não só para combater o sedentarismo, mas também para estimular a produção de vitamina D. Hoje em dia as crianças brincam menos na rua, passam muito tempo fechados e isto traduz-se numa baixa exposição solar. A redução da exposição a ecrãs e fazer as refeições sem distrações, são medidas importantes para que as crianças disfrutem e reconheçam o que estão a comer e não subestimem a sua ingestão alimentar.

Que desafios (em relação à obesidade) haverá pela frente nos próximos 10 a 20 anos?

Um grande desafio será garantir o acesso e o acompanhamento a nível dos cuidados de saúde, para todas pessoas que têm obesidade. Além disto, outro desafio será garantir o acesso à alimentação, tendo em conta a situação socioeconómica e o aumento dos bens alimentares. Por fim, as medidas não farmacológicas terão de estar sempre presentes, nomeadamente as mudanças de estilo de vida. Urge a necessidade de existirem equipas multidisciplinares, que permitam uma gestão da obesidade, adaptadas a cada pessoa.